Falei um pouco sobre o romance Jogador Número Um e sua adaptação para o cinema. Foi um bom livro de Ernest Cline e, não exagero, vivi e revivi tanto aquele universo cultural evidenciado no romance que não perdi quase nenhuma referência, mas apenas as relativas a jogos mais obscuros. Assim, arrisco que 90% do romance me desceu redondo. Foi gratificante lê-lo e divertido assistir ao filme de Steven Spielberg, com roteiro do próprio Cline em parceria com Zak Penn. Quem quiser conferir, acesse Um mundo sem erudição em Jogador N.° 1.
Na sequência (Jogador Número Dois), Wade Watts torna-se um dos homens mais poderosos do planeta, juntamente com sua trupe de intrépidos e impávidos geniozinhos do mundo virtual. A IOI - megacorporação malvada que só pensa em lucro - acabou definitivamente e Wade tornou o Oasis ainda mais relevante ao mundo após a descoberta de INO (Interface Neural OASIS), onde todos os sentidos humanos poderiam ser levados à realidade virtual, tornando-se, assim, uma quase extensão da realidade física. E mais: a tecnologia INO possibilita a captura de nossa consciência, ao criar clones de seres humanos, aptos a habitarem eternamente ambientes virtuais. Mas surge um novo vilão: a captura de consciência de James Halliday (sua versão digital, de certa forma), gênio da tecnologia que iniciou toda a corrida pelo easter egg que, encontrado por Wade no primeiro romance, lhe deu acesso a toda a fortuna do magnata e o acesso à condução do OASIS. Nesta sequência, a concepção de Wade e do finado Halliday como pessoas que nem para anti-heróis servem só cresceu. Assim, Wade está mais fraco do que nunca, emasculado e perdido, sem o norte da mulher forte em sua vida: a moralmente superior Samantha, sempre certeira em suas atitudes, sem falhas morais e independente da presença de homens tóxicos ao seu lado (tanto que abandonou o pobre trilionário Wade, logo após ele repartir a herança de Halliday com todos, inclusive com ela).
Para sua evolução, a fim de tornar-se alguém melhor e poder ser aceito novamente por Samantha, Wade explora experiências na INO-net, onde diversas consciências e vivências podem ser compartilhadas e vivenciadas como se fossem suas. Assim, ele é grato pela existência do O-gênero, pessoas que vivenciavam o sexo exclusivamente por meio de seus headsets INO "e que também não se limitavam a vivenciá-lo com um gênero ou orientação sexual específica", e chega a afirmar que: "Graças a anos navegando pela INO-net, agora eu sabia como era estar na pele de todo tipo de pessoa, fazer todo tipo de sexo. Eu transei com mulheres sendo outra mulher, e com homens e mulheres sendo homem. Reproduzi arquivos .ino de vários tipos diferentes de sexo hétero, gay e não binário, apenas por pura curiosidade, e cheguei à mesma conclusão que a maioria dos usuários INO: paixão era paixão e amor era amor, independentemente de quem eram os envolvidos (...)" (p. 107). Muito fofo isso, gente!
Se Wade é frouxo e este é o protagonista ideal na concepção de Ernest Cline, o destino de James Halliday, neste segundo livro, é pior: misógino e fascista, é assim que ele é descoberto na trama, para o desapontamento de todos. E nem John Hughes escapou da sanha revisionista de Cline. Embora o livro dedique à obra cinematográfica de Hughes dezenas de páginas, sua obra é apontada como errática em diversos momentos, por falta de representatividade, mesmo que o autor/diretor tenha escrito baseado em sua vida, nas experiências que viveu, entre as pessoas que compunham sua bolha. Sou escritor amador, como falei aqui; e todos os meus trabalhos se passam no mundo que conheço, entre as pessoas que conheço e conheci no agreste e semiárido; não há gaúchos em terras verdejantes no que escrevo. Nas palavras de Aech (garoto trans negro), a obra de Hughes é um "inferno branco", se perguntando: "Será que tem uma pessoa negra sequer nesta cidade?". Mas a sempre sensata Samantha lhe responde: "Este planeta tem um sério problema de diversidade, como todos os filmes dos anos 1980". Ela cita "este planeta" porque, no OASIS, Halliday criou diversos planetas exploráveis, em homenagem às suas paixões da juventude: filmes, música, jogos etc.
Para não ficar muito longo, paro por aqui sobre Jogador Número Dois. Mas ficou claro que a cultura pop contemporânea não comporta mais produções que não se curvem às pautas ideologicamente "corretas". E assim foi o Batman de Matt Reeves, que veio para tentar limpar de nossas memórias o Batman fascista do facista-mor hollywoodiano Christopher Nolan.
Eu queria ter visto The Batman no cinema para manter a tradição de quando, desde 1989, assisti à obra-prima de Tim Burton. Não assisto a mais nenhuma produção de súperes, exceto Batman, por amor ao personagem. O Cruzado Encapuzado representa uma ideia poderosa, mesmo quando na feira da fruta. Mas, pelo que vi neste último filme super duper, afundarão - em breve - o morcego numa cova rasa, sem honras. Mas vamos lá. Queria ter visto no cinema, mas os lunáticos do lockdown conseguiram quebrar os dois cinemas da pequena cidade onde resido. Devido às restrições, os multicines não conseguiram retornar sem antes quitar uma penca de dívidas e encargos acumulados. Sem saco para procurar alguma versão socializada, vi apenas hoje na HBO. E, colegas, que bosta.
Acredito que, em breve, Batman será mesmo o vilão dos próximos filmes, um entrave às revoluções sociais implementadas por gente boa como Coringa, Charada e toda a trupe. Aliás, o que eles andam fazendo no Arkham, vítimas do sistema manicomial burguês? Não é improvável os roteiros evoluírem para isso, considerando que, nesta grandiosa produção de duzentos milhões de doletas, ninguém presta. Nem Batman, aliás, que quase se vê levado ao lado obscuro da força! Na trama, o macho tóxico é a causa de todos os males sociais. Selina-Gato (uma jovem negra empoderada) chega a dizer isso explicitamente, quando menciona os "babacas brancos de Gotham". Mas ela não está sozinha nesta empreitada. O único policial honesto da cidade também é negro (Gordon) e ajudará a salvar a vida da futura Prefeita que limpará a cidade das mazelas sociais: a beldade negra e aguerrida Bella Reál, praticamente uma personalidade à altura de Kamala Harris! Ela, sim, possui as causas e os valores corretos, em meio a um lodaçal onde até mesmo os pais de Bruce têm segredos podres sepultados em sangue e corrupção.
Em 1989, antes da Era da Lacração (esta, definida por Eric Hobsbawm como: o justo e adequado comando da geopolítica, cultura e entretenimento via Twitter), Burton escolheu o brilhante Billy Dee Williams para dar vida a Harvey Dent. Mas, ali, ele não era a única maça saudável do pé: Bruce já secara as lágrimas pelo passado, o crime não tinha qualquer plausibilidade e Thomas Wayne ainda podia descansar em paz, como cidadão honrado que foi.
De qualquer forma, o filme possui grandes momentos, pois pequenos elementos mitológicos, a bem (ou mal) da força, se fazem presentes: engenhocas mortíferas para ceifar vida com dramaticidade, os gatinhos de Selina Kyle, o ar detetivesco na concepção até mesmo da capa do Morcego ou coisinhas menores, como quando Oswald Cobblepot está com pés e mãos atados e precisa andar como se fosse um pinguim. E também há explosões e perseguições!
Eu pensei que Matrix Resurrections (também visto no ótimo serviço da HBO Max) seria minha grande decepção deste ano, mas me surpreendi. Matt Reeves seguiu a lição de Ernest Cline e, assim, ficará bem na fita, livre dos ataques de tuiteiros - embora tenha sofrido uma pequena crítica por ter escolhido um asiático a ser espancado logo no início do filme.
Abraços e sigam com Laerte, abaixo!