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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Samuel Foi Pro Céu

 


Há alguns meses venho publicando na Amazon. Que maravilha é ter acesso a um ambiente sem frescura para auto publicação. E não qualquer plataforma: a maior loja de livros deste planeta, sem precisar lamber bolas de mandachuvas do moribundo mercado editorial. O mundo mudou; as formas de consumir conteúdo, idem: música, cinema, séries, livros, quadrinhos, pornografia etc. A internet veloz democratizou o acesso à informação e a espaços de uma maneira que, para mim, há alguns anos, seria inimaginável.

Quem me apresentou as vantagens da plataforma KDP - Kindle Direct Publishing foi o Fabiano Caldeira, o qual, aliás, é um escritor bem recepcionado no ambiente, especialmente entre os leitores de conteúdo erótico.

E agora estou lá na Amazon publicado meus livrinhos, sendo lido por alguns. E hoje publiquei novo conto: Samuel Foi Pro Céu, mais uma trama árida, num ambiente árido, 90% baseado em fatos reais e 10% pura imaginação. E é a pura imaginação, claro, que faz toda a diferença nas amarras das pontas que, no mundo real, ficam soltas.

O livro ficará gratuito durante quatro dias, de 25 a 28 deste mês. Para adquiri-lo, basta clicar em "comprar" por "R$ 0,00". Não há erro. Ele irá para sua conta da Amazon e, quando quiser lê-lo, só precisa do aplicativo Kindle (aliás, ótimo aplicativo). Também pode ler no computador, na própria página da Amazon. Mas eu, particularmente, prefiro ler no tablet ou num celular com quase 7" de tela (se o texto for curto). Para quem possui o e-reader Kindle, melhor ainda.

Enfim, fica a dica de leitura grátis: meu livro, neste link.

Aproveitei para incluir, gratuitamente, os demais livros, pelo mesmo período que o lançamento atual:

  1. A Balada do Boiadeiro (conto bacana)
  2. Bloom Mais Feliz (novela infantil)
  3. Uma História de Robôs (conto fraquinho)
  4. Invenção Noturna (poesia reunida)

Me diverti bastante escrevendo estes livretos e creio que a leitura vale realmente a pena. Tento ser criterioso com o que compensa ser publicado. Admito que o conto Uma História de Robôs é algo aquém do esperado (do esperado por mim, ao escrevê-lo), mas serve para mero entretenimento descompromissado. Já Invenção Noturna me custou anos de escrita e revisão, com resultado positivo em todos os aspectos.

Fico por aqui. Abraços e até a próxima.


quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Dona Lola à sombra de Stalin

Na primeira cena de A Sombra de Stalin, George Orwell inicia a escrita d'A Revolução dos Bichos: "O senhor Jones, dono da Granja do Solar, fechou o galinheiro para a noite...". E logo passamos a outro senhor Jones, de primeiro nome Gareth, jornalista galês que expôs ao mundo os horrores do Holomodor (morte pela forme) ucraniano. Outra figura histórica com destaque é Walter Duranty, correspondente do The New York Times em Moscou, "especialista" em política internacional e ganhador do Pulitzer (premiação que lhe conferia autoridade), que já na década de '30 produzia fake news para a grande mídia estabelecida, sendo irreprochável por sua autoridade de "jornalista sério". A troco de grana, boa vida e por pura ideologia, Duranty enganou o ocidente, durante anos, com notícias sobre as maravilhas do comunismo implantado na antiga URSS.

Gareth Jones foi à Ucrânia e viu a morte por forme de perto, se atrevendo a peitar as fake news do establishment midiático e, devido a isso, comendo o pão que o Diabo amassou. 

O Holomodor não foi apenas um desastre econômico após a coletivização forçada de terras: foi a busca pela mudança na tessitura social de um local, experimento de eugenia histórica e social, a busca por um novo mundo a partir da matança. Isso é o comunismo (ou socialismo, como queiram). Ideologia macabra que conquistou corações como o do próprio George Orwell - escritor ambíguo que chegou ao final vida acreditando no "socialismo democrático" (seja lá o que for isso), mas sabendo que nenhum sistema igualitário poderia dar certo, porque é antinatural e sempre nos levaria ao autoritarismo.

Em um determinado momento do filme, Gareth pergunta a uma ucraniana o que houve ali, ao que ela responde: "Homens vieram aqui e acharam que podiam substituir as leis naturais". Uma camponesa poderia não saber se expressar assim. Mas sentiria que a política é artificial e os ideais coletivistas, postos como foram, são antinaturais. Outra pessoa pobre e sem instrução que sabia disso é Dona Lola, a mãe-ideal de Éramos Seis, romance maravilhoso de Maria José Dupré.

Em Éramos Seis, Dona Lola possui três bons filhos e um vagabundo: Alfredo. Este sempre desejou ser rico, gastava horas delirando com o dia onde teria bastante grana para morar em mansões e andar de carrões (com direito a motorista). Mas nunca gostou de trabalhar e quando arranjava algum trabalho era para roubar o patrão e se lamentar da vida. Em pouco tempo, lhe caíram no colo ideias marxistas: luta de classes etc. Logo, Alfredo "descobriu" que era infeliz porque no mundo havia ricos. Ele não tinha um carrão porque algum ricaço lhe roubou. O justo seria que as pessoas com alguma graninha dividissem tudo com ele. Quando não estava vagabundeando ou roubando, Alfredo estava extorquindo a mãe doceira para comprar roupas caras e perfumes. Só andava na beca e cheiroso!

Em vários momentos, Alfredo aproveita para destilar seu refinado conhecimento sobre marxismo de boteco. Fala de livros, teorias e personalidades históricas, de maneira bem superficial. Em um desses momentos, sua mãe lhe contrapõe com a natureza humana, como transcrevo abaixo.

‒E suas ideias socialistas?

‒Bem. Estudei e entendo um pouco por causa do tal amigo que tenho. Todos somos socialistas, a senhora, eu, todo o mundo.

‒Não diga bobagens. Eu não sou.

‒Mamãe, a senhora pensa que socialismo é um bicho-de-sete-cabeças. Nada disso. É uma luta de classe entre o capitalista e o proletariado Marx chamava os capitalistas de aventureiros, devido à grande cobiça que os domina e o ideal de Marx era dividir os bens, os meios de produção e outras coisas entre os operários; não deixar tudo na mão dos capitalistas, quer dizer, não deixar eles terem tudo e o proletariado não ter nada. Chama-se uma revolução social. Não acha nobre a teoria?

‒Dividir a propriedade, o dinheiro, os bens com os outros? Isso é comunismo, eu já disse. Então esta nossa casa que custamos tanto a pagar, levamos anos economizando, passando apertado, sem roupas suficientes e agora tenho que repartir a metade com o genro de D. Genu, por exemplo, que não faz nada certo? Um dia trabalha, outro dia não? Vive de biscates? Não. Deus me livre!

Alfredo começou a rir e sentou-se de novo na cadeira:

‒A senhora é formidável.

‒Pois não é isso que está falando? Sua teoria não é essa? Repartir tudo com os que não têm? 

‒Não é bem assim. Seria muito longo explicar tudo à senhora, mas não é isso. A senhora não é capitalista; o ideal é impedir que o capitalista ajunte tudo nas mãos e obrigá-lo a repartir com o proletariado.

‒Está certo, mas apesar de não ser capitalista, eu tenho esta casa e você falou também em bens, não falou? Há muita gente que não tem uma casa como esta, logo, preciso repartir com aqueles que não têm. Está errado, filho.

Alfredo jogou fora o cigarrinho e ficou um instante pensativo. Perguntei.

‒Gosta de figos em calda?

Olhou para mim com um olhar estranho:

‒Não. É muito doce. Por quê?

‒E de café, você gosta?

‒Ora esta, mamãe. Tomo café o dia inteiro; o que tem isso?

‒E Isabel gosta de café?

‒Nunca a vi tomando café. Por quê?

‒E ela gosta de figos em calda?

‒Gosta, porque quando vem de Itapetininga, ela come tudo.

‒ Julinho fuma?

Ele começou a rir.

‒ Já estou adivinhando onde quer chegar. Não.

‒E você?

‒O dia inteiro. Até onde vai?

‒Não vou longe. Você é o mais alto dos irmãos; Carlos é de altura regular, Julinho é o mais baixo dos três. Você é louro, Julinho é moreno, Carlos não é moreno, nem louro. Os cabelos de Isabel são pretos, não são? Que engraçado! E você é louro. E no entanto vocês são irmãos, filhos dos mesmos pais, crescidos no mesmo lar.

Ele sorriu e ficou me olhando; comecei a forrar as formas de empadas com a massa:

‒Você gosta de café, Isabel não toma café. Carlos é estudioso e só está feliz com um livro nas mãos; você não gosta de estudar. Julinho gosta de ajuntar dinheiro, desde pequeno gostou de dinheiro. Você não pode ter dinheiro no bolso, quanto tem, quanto gasta. Joga pela janela fora.

Não é isso mesmo, Alfredo?

Ele sorriu mais:

‒Onde está o fim da história?

‒O fim da história é que todos somos diferentes, meu filho. No físico, no moral, no gosto, no caráter, nas particularidades, nas tendências, na essência, enfim. E como podemos viver igualmente, dividir igualmente o que possuímos e levar o mesmo padrão de vida, se somos tão diferentes como os dedos da mão?

‒Ora esta! D. Lola também tem suas teorias!

Um dos fundamentos do apelo massivo ao esquerdismo é a inveja. Há diversos elementos, claro. Há cérebros como Eric Hobsbawm, para quem o morticínio é o caminho adequado para refundar a existência e o próprio homem à imagem da ideologia. Há a gurizada de apartamento, adepta do lacre vazio. Há os políticos e burocratas que surfam na onda do inchaço estatal. Há os artistas bancados com grana pública e colados na mídia mainstream. Há vários. E os invejosos, como Alfredo. E pessoas como Dona Lola e a camponesa de A Sombra de Stálin, que falam de coisas cada vez mais distantes como "natureza humana" e "ordem natural". Do diálogo acima, a idosa calejada pela realidade se opõe ao antinatural do coletivismo. Suportamos o coletivo até poucos limites: o Estado moderno. Além disso, é insanidade.

É isso. Finalmente assisti a este filme e não pude deixar de associar aquela agricultora faminta à Dona Lola: qualquer ser humano razoavelmente são das ideias, com alguns neurônios sadios e que sentiu a vida ao seu redor (suou, sangrou, sentira dor, rezara ou meditou, temeu pelo povir e amou) percebe de cara a malignidade dessa engenharia social que, há séculos (antes mesmo do marxismo), poucas mentes e grandes fortunas quase dinásticas querem empurrar à nossa existência.

Veja o filme, leia o livro! Valem a pena.

Abraços famélicos e até a próxima.



quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O motor da História em Isaac Asimov


Imagem de meu acervo particular.

Fundação é uma espetacular série de livros escritos por Isaac Asimov durante décadas esparsas. Sedimentado numa trilogia nuclear (os três primeiros volumes), possui quadrilogia escrita mais à frente, complementando o universo ficcional com maestria (duas sequências e duas prequelas). Confesso que a trilogia primeva nos parece meio anacrônica, nos dias atuais, quando imaginamos o futuro da humanidade. Contudo, isso é comum a toda obra de ficção científica, que pode apenas dar pitacos acerca de nosso avanço tecnológico. O que escrevemos hoje sobre ficção científica, por exemplo, parecerá desconexo num futuro até mesmo próximo.

A mote de Fundação é este: a humanidade dominou as estrela e habita milhões de planetas juntos a milhares de sóis. Não sabemos sequer nossa origem e a Terra é vista, a princípio, como mito. No início da trama, tudo gira em torno do Império Galáctico, com mais de vinte milênios de poderio hegemônico, em todas as áreas da vida humana. Esse, por sua vez, será extinto em poucos séculos e quem descobre isso é Hari Seldon, psicólogo. Por psicólogo entenda um estudioso da psico-história. Por meio desta ciência sócio matemática, é possível antever grandes movimentos de massas sociais, com precisa informação de margem de erro. A ideia, aliás, não é boba. Certamente, não podemos "adivinhar" o que Seu Zé fará amanhã no boteco da esquina. Mas grandes massas podem ter seus movimentos antevistos analisando-se a História e conhecendo-se um pouco da psique coletiva. Além disso, Seldon (e os que viriam após sua morte, herdeiros de seu Plano) teriam milênios de evolução tecnológica para elaborar cálculos precisos (computação quântica?). Sabendo do fim do Império e que mais de trinta mil anos de barbárie seria instaurada em todo o universo conhecido, Seldon tem um plano (O Plano Seldon): fundar duas instituições que não conseguiriam impedir a bancarrota, mas, sim, ao menos evitar que o claro do Império se desse por trinta milênios, mas apenas por unzinho e até mesmo com certa ordem social cósmica durante o período de "trevas". A primeira Fundação é criada no planeta Terminus (nos confins da galáxia); a segunda Fundação permanecerá com localização incerta durante séculos.

Ainda acerca de leis de movimentos sociais massivos, penso bastante no velho provérbio (origem incerta): "Homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis geram homens fracos, mas homens fracos criam tempos difíceis e tempos difíceis geram homens fortes". Não seria improvável que gerações mais evoluídas intelectualmente e com poderosos instrumentos de cálculos compendiassem bilhões de diretrizes sociais assim - separando o joio do trigo - para antever o futuro. Acredito piamente que, no futuro, análises assim serão realizadas em realidades simuladas. Isso se já não habitamos alguma simulação, onde esqueceram de me fazer multimilionário e feliz proprietário de um pau com 24 centímetros.

Posteriormente à trilogia inicial (e nuclear), os dois volumes com a sequência do universo enriqueceram a trama substancialmente. Até mesmo o Plano Seldon foi descaracterizado. Nos livros com prequelas, o mesmo foi feito. Mas não foi ruim. Tudo se encaixou no universo literário de Asimov (robôs, expansão espacial, a existência dos Eternos etc.). Mas não vou me estender aqui sobre isso. O importante neste momento é o motor da História na visão de Asimov e como, de certa forma, essa busca por engrenagens em nossa evolução influencia nossas vidas cotidianamente. Grandes fortunas e líderes progressistas trabalham no assunto a todo vapor.

Eu não vinha pensando em Asimov há certo tempo. Mas então vi meramente por acaso a sugestão da série Fundação num aplicativo e constatei ser a adaptação dos romances para série distribuída pela Apple TV+. Não vou assisti-la, obviamente, porque tenho pouco tempo para empreender em algo que tem grandes chances de ser uma bosta. E acho estranho levar Fundação à tela. O tempo passa rápido nos livros. Entre um e outro romance, passam-se séculos (salvo engano, em torno de seis, sendo que após o décimo seria instaurado o Segundo Império Galáctico, conforme o Plano original, não sem antes a intervenção da inteligência coletiva Gaia - mas isso também é outra história...). Levar algo assim para um seriado retira o principal do projeto em tal plataforma: o apego que o público precisa nutrir por personagens, durante várias temporadas). Pode ser que consigam bons resultados, com bastante lacração contemporânea onde até os robôs farão empoderamento pelas cores de suas fuselagem ou porque querem trocar pintos biônicos por vaginas de funil galvanizado. Mas, francamente, não quero mesmo gastar horas e horas para analisar isso.

Asimov foi, essencialmente, crente no mundo sem fronteiras. Foi além: uma galáxia onde todos viveriam felizes, em perfeita comunhão, ouvindo "Imagine" no éter. De certa forma, seria um H. G. Wells cósmico, com todos os vícios sobre a necessária comunhão de povos, mesmo que a fórceps e sob a batuta de classes intelectualmente iluminadas. E isso, para mim, é antinatural e quase maquiavélico. Para mais, sugiro o que já escrevi sobre H. G. Wells

Ver a notícia do seriado me lembrou essa sanha macabra em se dominar o curso da história a todo custo, suprimindo-se a liberdade, sob pretexto de promovê-la. Na trama, a Segunda Fundação evoluiu sem grandes avanços tecnológicos (diferentemente da Primeira, próspera em avanços técnicos). Ela foi pensada como poderio mentálico: o supremo comando do poder da Mente sobre tudo. Assim, semioculta, as forças mentais dos Oradores da Segunda Fundação procuraram contornar todas as possíveis crises sociais e militares para que o Plano Seldon promovido pela Primeira Fundação não saísse dos trilhos. E isso ainda seria pouco para Asimov: outra grande inteligência coletiva (inspirada por antigos robôs super evoluídos) suplantaria tudo, levando a humanidade à homogeneização total, a nível universal. Não haveria mais "eu", mas apenas "nós". Plantas, insetos, estruturas edificadas, todos os animais e até mesmo os homens seriam somente manifestação celular do grande organismo Galáxia (ou Galaksia, superorganismo interplanetário).

Hoje, estamos à beira do abismo da homogeneização social. Você não terá nada e será duplamente infeliz, enquanto grupos iluminados decidirão os limites de sua miséria existencial. Por anos, grandes pensadores sonharam com isso, se esforçando para impulsionar o motor da História a todo custo, promovendo banhos de sangue, miséria e sofrimento de toda ordem para chegar a "reFundação" da Terra. Certamente, os avanços tecnológicos permitiram acelerar o processo. E isso também me recorda como em Fundação e Império (segundo livro da série), alguns mandachuvas da Primeira Fundação pensaram em "acelerar" o processo histórico para instaurar o Segundo Império Galáctico mais brevemente, algo que também foi pensando pela líder de Terminus (Prefeita Harla Branno) em Limites da Fundação.

Atualmente, a editora Editora Aleph (fundada pelo grande Pierluigi Piazzi, o Asimov brasileiro - conquanto nascido em Bolonha) possui diversos formatos para a coleção Fundação, além de outras obras do autor. Há pouco tempo, aliás, saiu belíssimo volume (edição única) com os três primeiros livros. Mas, se você quiser ler todos, recomendo a caixa com os sete livros. Aliás, há algum tempo, venho achando livros volumosos meio incômodos para manusear durante a leitura. Penso que caixas com vários livros finos são mais interessantes. Certamente, não faltam também opções "de grátis" por aí, para ler no conforto dos e-readers. O Kobo, sem dúvidas, foi o melhor presente que ganhei até hoje. Percebo que o Lev sumiu do mapa e que, hoje, o Kindle seria a melhor opção para ler no formato eletrônico.

Para ler Fundação, há mais de um caminho. Você pode ler, antes da trilogia nuclear, as prequelas, sem qualquer prejuízo aparente, por exemplo. Entretanto, recomendo a leitura na ordem de lançamento dos livros, conforme capas abaixo. Para expandir o Universo Asimoviano, recomenda-se a leitura da "série dos robôs" (constituída pelas obras As Cavernas de Aço, O Sol Desvelado, Os Robôs da Alvorada e Robôs e Império) bem como o romance O Fim da Eternidade. Nunca li a série dos robôs, embora tenha vontade. Talvez algum dia retire este atraso.

É isso. Abraços robóticos e até a próxima.

Imagem de meu acervo particular.


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

A Peste de Albert Camus

 

A única maneira de lidar com um mundo não livre é tornar-se tão absolutamente livre que sua própria existência seja um ato de rebelião. - Albert Camus, frase de efeito inútil e bonita.
Mandaram prender sumariamente o Zé Trovão e eu até faria piadinha infame com Ana Raio.

Salvo engano, comprei o livro acima em 2001, numa livraria Cultura situada na cidade onde morei. Não conhecia nada de Albert Camus e a aquisição foi totalmente aleatória porque queria ler algum romance e este me chamou atenção pelo mote: a mediterrânea Oran ingressa em quarentena pesada após surto de peste bubônica. Todos terão que se aturar enquanto vão morrendo juntos. Quem entrou não sai mais e o contrário também é imposto por lei marcial. Como o li há quase vinte anos, não posso resenhá-lo. Mas é um dos poucos livros ficcionais em minha estante que está anotado, cheio de grifos e marcas no texto.

Alberto Camus, quando não estava escrevendo e procurando confusão, aproveitava os prazeres do tabaco e de xoxotas. Se não tivesse falecido num acidente automobilístico, teria falecido de câncer (ou da tuberculose que o acometia há anos) ou por sífilis, penso. Para ele, a liberdade individual estava no núcleo onde todas as discussões deveriam se pautar.

Lembrei deste livro hoje ao ver notícia das mais recentes prisões de pessoas dentro do tal "inquérito das fake news". E o título também tem a ver com nosso momento atual, pandêmico. Pessoas sendo presas arbitrariamente por opiniões, injúrias e difamações. Seja de direita, esquerda ou isentão, qualquer um deveria assombrar-se com esse momento estranho em nossa republiqueta. As pessoas alvos neste procedimento esquisito deveriam ser investigadas ou processadas. Mas Kafka é aqui e agora. E lembrei que Camus comeu o pão que o tinhoso amassou por seus ideais libertários, insurgindo-se contra todas as formas de tirania. Por criticar o stalinismo e espalhar a "fake news" que pessoas morriam de fome e fuzilamento no comunismo, foi execrado por seus amigos intelectualóides da elite francesa. Sartre - corno manso notório quando a cultura cuckold era insignificante - foi seu maior amigo-da-onça.

Durante minhas boas décadas de vida, cansei de ver protestos violentos pelo país: depredações de propriedades públicas e privadas, terror no campo, agressões e ameaças variadas. Nunca deram em nada. Ninguém era preso, salvo pontuais exceções. Hoje, estão prendendo sumariamente gente que xinga agente político!

Não tenho mais nada a dizer sobre estes absurdos. Mas aproveito para recomendar o romance de Camus, expoente do Absurdismo, laureado com o Nobel de Literatura quando a premiação significava alguma coisa.

Abraços pestilentos e até a próxima.

quarta-feira, 10 de março de 2021

O Homem Invisível de H. G. Wells e Alan Moore


Cena de The Invisible Man (1933)

"O Senhor Wicksteed era um homem de quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, intendente de Lord Burdock, de aparência e hábitos inofensivos, de modo que seria a última pessoa no mundo a provocar um antagonista tão terrível. Contra ele, o Homem Invisível usou uma barra de ferro que arrancara de um pedaço partido de cerca. Abordou o pacífico homem, que calmamente voltava para almoçar em sua casa ao meio-dia. Atacou-o, destruindo suas frágeis defesas, quebrando-lhe o braço, derrubando-o no chão e esmagando-lhe a cabeça até que se tornasse geleia."

Acho que o primeiro filme onde vi boa concepção d'O Homem Invisível foi no excelente O Homem Sem Sombra (2000, locado em VHS). Na verdade, à época, foi excelente para mim. Hoje, acho-o meio fraquinho. Mas ali estava toda a essência da obra de H. G. Wells, adaptada para o mundo contemporâneo. O cientista interpretado por Kevin Bacon torna-se extremamente cruel e insano, como efeito colateral à sua invisibilidade irreversível. Depois, conheci o "verdadeiro" Griffin em A Liga Extraordinária de Alan Moore e Kevin O'Neill. Entre tantas mentes malignas e até mesmo alienígenas, Griffin (mesmo integrando grupo de heróis vitorianos) desponta como o pior dentre os piores. Sua primeira aparição é habitando, escondido, uma escola para moçoilas, onde se passa por assombração para estuprar geral. No segundo volume d'A Liga, barbariza Mina Murray e, por isso, tem seu final tragicamente selado pelo Dr. Jekyll/Hide, com todos os ossos do corpo trucidados e, ao final, enrabado pelo monstro, deixado para morrer em agonia (e arrombado).

Não havia lido a obra primeva de H. G. Wells, até recentemente. E, colegas, Alan Moore foi certeiro naquela representação. O trecho transcrito acima evidencia como o físico é sádico. Contudo, antes mesmo de ingerir a fórmula, o sujeito era mau. Totalmente indiferente às pessoas, por exemplo, levou o pai ao suicídio ao roubá-lo. E fez questão de não tentar limpar sua honra na cidade onde morava e faleceu afamado por ladrão. Em dado momento, ainda zomba do suicídio, atribuindo-o à fraqueza do genitor.

N'A Liga, me causou estranheza que, após o último suspiro de Griffin, seu sangue aparece nas roupas de Hide e em todo o canto. Foi uma licença à ideia original de Wells. O sangue coagularia normalmente mesmo com seu dono ainda vivo. No romance, o louco invisível explica a seu amigo Kemp acerca disso: "É um grande incômodo ver meu sangue espalhado por aí, não é? Ocorre que ele se torna visível quando coagula. Modifiquei apenas o tecido vivo, portando a invisibilidade só durará enquanto eu viver.". O autor também tenta explicar o procedimento de invisibilidade de todos os tecidos com algo acerca de ótica e refração da luz. Achei interessante, aliás. Ao menos para a época quando foi publicado (1987).

Similar aos quadrinhos de Moore e O'Neill, o final do Homem Invisível também é trágico no romance. Só não rola, certamente, o enrabamento forçado. Aliás, é bom notar que Moore possui uma fixação esquisita por violação...

Outro aspecto da obra que poderia ser melhor aproveitado nos quadrinhos é o problema em estar invisível enquanto se digere alimentos, recebe gotículas de água, neve e sujeira. Isso acaba se tornando um inferno na vida de Griffin, além de passar bastante frio e machucar os pés nas longas caminhadas. No excelente filme Memórias de Um Homem Invisível (de 1992, visto por mim diversas vezes na Sessão da Tarde, mas que não considero meu primeiro contato o Homem Invisível próximo da concepção original, por se tratar de comédia e Chevy Chase ser vítima e não vilão), esses incômodos são explicitados. Há cena neste filme, aliás, que lembra o romance, além dos problemas com comida: o ato de fumar: "Depois de comer, e fez uma farta refeição, o Homem Invisível pediu um charuto a Dr. Kemp. Mordeu a ponta rudemente, antes mesmo que Kemp encontrasse uma faca para cortá-la, e queixou-se quando a folha do revestimento afrouxou. Era estranho vê-lo fumar. Era possível ver a boca, a garganta, a faringe e as narinas moldadas em uma fumaça espessa que rodopiava dentro dele".

No cinema, ao menos Chevy Chase tornou-se invisível junto com sua roupa e assim evitamos vê-lo peladão. Quando puderem, confiram o filme. Representa bem o auge de um tipo de comédia que se perdeu no tempo e ainda contamos com a beleza jovem de Daryl Hannah.

Em resumo: gostei de ler o romance. Não supunha ser tão bom. Via-o apenas como ficção científica e me deparei com puro terror. Além disso, a edição da Pandorga ficou excelente. Evito comprar livros impressos, mas naquelas promoções onde mal se paga o frete, adquiri o belíssimo box. Os livrinhos tiveram belíssimo trabalho gráfico, com capas super coloridas emulando livretos pulp e quadrinhos juvenis. O artista brasileiro responsável chama-se Butcher Billy. Na caixa, ainda temos A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos.

Acerca da arte, infelizmente fica claro o artista desconhecer os livros. Vê-se claramente que sua concepção artística se deu sobre garimpo digital de filmes antigos. Sua concepção de Morlocks (humanóides d'A Máquina do Tempo), por exemplo, se baseia no filme de 1960, totalmente discrepante da obra escrita. Prefiro pensar que este foi o objetivo, num trabalho de capista cujo objetivo seria, justamente, remeter a pôsteres cinematográficos. Vai-se saber...

Não falarei sobre os dois outros romances (novelas) nesta postagem. Talvez noutra. Mas destaco me chamar atenção a apresentação de A Máquina do Tempo, onde os editores ressaltam que a civilização mostrada ali, no futuro (ano 802701, onde os Eloi(s) habitam na superfície e os Morlocks nos subterrâneos, "escravizados" para manter a vida boa dos "de cima"), constituiria "feroz crítica à sociedade industrial" da época do autor, pois este foi inspirado em Marx e era "conhecido defensor de ideais socialistas". Até aí, ok. Mas e o restante? Não compreendo a tara dessas editoras em advogarem comunismo a todo custo. Quando a novela foi escrita (publicação em 1895), sequer havia regime de mercado como hoje. Além disso, Wells morreu em 1946 e não testemunhou a abertura dos arquivos de Moscou, os números dos expurgos de Mao e Pol Pot e sequer chegou a saber do Holomodor (encoberta por anos a fio). Acho perigoso quando a esquerda festiva utiliza figuras do passado para enaltecer ideologias macabras. Aliás, penso que, atualmente, A Máquina do Tempo representaria bem o comunismo: Os Morlocks (cidadãos comuns) ralando por migalhas para manter os Eloi (políticos, burocratas e amigos do Partido).

Ademais, não há sistema de exploração no romance. Veja bem: de acordo com o Viajante no Tempo, a sociedade evoluiu em paz durante eras: "Os ricos enfim seguros com suas riquezas e confortos, os trabalhadores seguros com suas vidas e trabalhos.". Só que, num dado momento, o sistema degringolou: a aristocracia se deu cada vez mais a atividades meramente frívolas e emburreceram e os operários, proprietários de todo o maquinário no subsolo, passaram a supri-los em troca de alimentos. Ocorre que a carne passou a rarear e apenas os Eloi eram frugívoros. Logo o hábito ancestral do canibalismo retornou. E os Eloi, mais fracos, passaram a ser caçados durante a noite. O Viajante chega a enxergá-los como rebanho que pasta feliz durante as manhãs para, sem advertência, servir de alimento à raça mais forte: justamente os Morlocks.

Ao final da obra, o editor destaca os ideais feministas de Wells e, novamente, repete sua ideologia socialista (o cara seria quase o Fiuk!). Faltou um pouco de pesquisa, como sempre. H. G. Wells gozou de bastante prestígio ainda vivo e, logo, se inclinou aos ideais fabianistas, integrando a elite intelectual por trás da Sociedade Fabiana: pobres e classe média não deveriam existir se não para ser direcionados pela nata intelectual e econômica. Destaco que fabianistas célebres defenderam publicamente genocídios de "raças inferiores" e "pessoas inadequadas". Bernard Shaw, v.g.,  se esforçou para criação de gases letais que facilitassem a execução de homossexuais, negros, ciganos e povos subdesenvolvidos. Pois é... Wells era adepto do socialismo (fabiano).

Conhecido defensor de um mundo sem fronteiras, empreendeu bastante energia pelo fim de soberanias nacionais em prol de uma Nova Ordem Mundial, algo deixado claro em seu A Conspiração Aberta e em artigos e palestras. Felizmente, possuímos uma dessas palestras gravada, onde os ideais fabianistas do autor, que nada tinham de "amor ao próximo" - mas, sim, a implantação de um governo global - ficam claros para quem fez o dever de casa além dos livros made in MEC. E este Governo não existe sem totalitarismo, supressão cultural, expurgos e demais males de todo pensamento revolucionário.

Destaco ainda uma pérola encontrada logo no início d'A Guerra dos Mundos. Ao narrar a extinção de bisões e dodôs causadas por nós, pessoinhas más, o autor cita a dizimação dos aborígenes tasmanianos, da seguinte forma: "Os tasmanianos, apesar de sua aparência humana, foram varridos da face da Terra em uma guerra de extermínio empreendida por imigrantes europeus (...)". Destaco: "apesar de sua aparência humana". Enfim, por mais que algumas pessoas queiram dar lições éticas (lacrar, como falamos atualmente), em alguns momentos sempre deslizarão em suas convicções mais sombrias. Ainda pensei que poderia ser equívoco na tradução. Então fui em busca do texto original e achei: "in spite of their human likeness". C'est fini!

É isso. Desconhecia totalmente o escritor britânico e me surpreendi com sua prosa fluida e agradável, bem como com as bases científicas bem fundamentadas. A presença de seus escritos vê-se em toda a cultura pop (cinema, quadrinhos, jogos etc.). Achei que seu nome fosse sempre recordado pela natureza de precursor. No entanto, estava errado: sua prosa é notável até para o dias atuais. Fica a sugestão de leitura, ainda mais para quem gostou da concepção de Griffin n'A Liga Extraordinária.

Abraços invisíveis e até a próxima.

sábado, 10 de outubro de 2020

O mal em Pinóquio

Depois que me comprou, o senhor me trouxe para este lugar para me matar, mas então, cedendo a um sentimento humanitário, preferiu amarrar-me a uma pedra no pescoço e me atirar ao fundo do mar.

Pinóquio, Capítulo XXXIV.

No divertido Esquerda Caviar, Rodrigo Constantino nos diz que o primeiro representante de peso dessa estirpe radical chic foi Jean-Jacques Rousseau. Como grande amante da humanidade e sem capacidade de amar sequer o próximo (aliás, nem os próprios filhos), teceu a ideia de contrato social que lhe deu o nobre título de pai do totalitarismo moderno. Dele é o pensamento - dissociado da realidade - "o homem nasce bom e a sociedade o corrompe", contrário à doutrina judaico-cristã do pecado original. Para os que desconhecem: católicos batizam crianças, por exemplo, porque estas nasceriam contaminadas pelo pecado primevo. Crianças podem ser más, capazes de atos atrozes, mas perdoadas por sua ingenuidade. Simples assim. Esse batismo, mais à frente, seria renovado no sacramento da crisma.

Acredito piamente que o homem nasce dominado por sua natureza selvagem (nada generosa). E apenas com bastante força de vontade e aprimoramento espiritual ele, talvez, consiga melhorar enquanto ser vivo consciente de sua existência. Esse é mote por trás do maravilhoso O Senhor das Moscas, do Nobel William Golding, o qual viveu e faleceu descrente no ser humano. Na trama, crianças cedem a ímpetos selvagens em pleno isolamento civilizatório, quando confrontadas com o estado natural. Ao depositarmos fé na capacidade humana de - por normas jurídicas, exercendo poder - mudar a sociedade, lhe damos a corda onde seremos pendurados. Como disse Olavo de Carvalho certa vez, "quando ouço alguém falar em mudar o mundo, me escondo logo sob a cama".

Pinóquio - A História de Um Boneco, obra escrita de Carlo Collodi essencial à literatura mundial, parte do mesmo pressuposto bíblico: os seres vivos não são naturalmente bons. E assim é Pinóquio: mal, vagabundo, preguiçoso, cruel e ardiloso. Um pequeno canalha-mor em madeira seca. Sua primeira conduta enquanto vivente é explorar o amor do pai por si e assassinar o Grilo Falante. Mas à frente, ludibria a Fada de Cabelos Turquesa e, novamente, explora o amor quase materno. Entre trancos e barrancos, após sofrer roubos, tentativas de assassinato, cárcere privado, escravidão e ser até mesmo transformado em jumento e jogado ao mar para ter o couro esfolado, reconhece precisar melhorar e, assim, em redenção, procura se redimir de todas suas falhas, tornando-se finalmente um menino de carne e osso como prêmio.

A citação escolhida por mim a esta postagem, acima, evidencia o mundo habitando pelo boneco sacana. Um garoto imoral numa existência igualmente corrompida. O mundo nunca foi bom lugar onde habitar, mas é o único que possuímos e vale a pena tentar viver em paz sobre ele, flutuando no vasto espaço.

Em postagem anterior, falei sobre a insanidade nos preços dessas obras esgotadas da finada Cosac Naify. Ali, também mencionei o apuro gráfico do volume. Quem quiser adquirir um livro caprichado e a preço justo, recomendo a edição da SESI-SP Editora, elaborada sobre acervo doado pela Cosac Naify, que respeitou a intenção original do autor.

Também deixo como sugestão o excelente quadrinho Pinóquio de Winshluss, recomendado por mim há alguns anos.

Abraços madeirísticos (!) e até a próxima.

Obras mencionadas nesta postagem.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Tô rico e não sabia [ Assombros cotidianos ]

Meu rico dinheirinho.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
- Livros, Caetano Veloso

No antigo blogue, eu expressava a ideia de que, com a digitalização da informação e seu acesso de forma cada vez mais fácil (novos dispositivos mais baratos e eficientes, banda larga etc.), os livros precisariam de maiores cuidados quanto à forma. O livro, enquanto objeto tátil, necessitaria se tornar mais atraente/atrativo. Se é para comprar brochura vagabunda pelos olhos da cara, melhor ler de graça em tablet, ereader ou até mesmo celular. E, no Brasil, a Cosac Naify foi responsável por esse salto de qualidade em nossas publicações. A editora capitaneada por Charles Cosac foi, de certa forma, entidade filantrópica em terras tupiniquins. Seus donos nunca visaram ao lucro. Queriam apenas editar bons livros com toda a frescura do mundo. Durante dezenove anos, venderam livros de excelente qualidade gráfica (alguns, com arroubos quase fetichistas) abaixo do preço de custo.

Sempre me interessei pelo mercado livreiro e pelo livro não apenas enquanto veículo de conhecimento, mas, igualmente, tátil. De certa forma, o livro sempre pode ser produto de arte destinado a invólucro de... arte. Hoje, diante de questões relevantes sobre espaço físico, economia de grana e as safadezas das editores conosco, leitores, eu apoio bastante o meio eletrônico, especialmente o gratuito. Dá para ler de graça e com qualidade em diversos "gadgets" (para usar a palavrinha mais apropriada a este novo mundo). Então, leiamos. E, claro, reservemos o meio físico a algumas obras especiais e, claro, que nos deem capricho gráfico. Repito: se a obra for figurinha fácil e estiver impressa em brochura descartável fubenta, a preço elevado, melhor "puxar da internet", como diz o matuto.

Esses dias, eu comentaria aqui sobre o romance Pinóquio de Carlo Collodi. A edição possui o apuro gráfico da finada Cosac Naify: capa dura com gravações em dourado sobre hot stamping, ilustrações de Alex Cerveny, miolo em papel GardaPat Kiara 115 g/m² (papel "dubom", com elevada gramatura), impresso na lusitana Nortprint. Três mil exemplares tiveram luva em material rígido.

Sobre as ilustração, destaco a técnica cliché verre empregada pelo artista. É algo trabalhoso, onde o desenho é feito por remoção de fuligem aplicada sobre placa de vidro. Chamuscam a placa com vela e, após, se vai desenhando sobre ela a seco. Como resultado obtemos o "negativo" do desenho, para impressão posterior mediante contato fotográfico. Amiúdes: coisa fina e cheia de frescurinhas. Não me recordo por quanto comprei, mas foi alguma ninharia de saldão. E, ao escrever sobre o romance, efetuei breve pesquisa sobre a disponibilidade do texto integral (nada dessas babaquices adaptadas). Qual minha surpresa quando vi livreiros da vitrine da Amazon vendendo a mesma edição por até R$ 999,90.

Como diz o comunista-coxinha Huck: loucura, loucura, loucura!

Daí, resolvi verificar outras obras da Cosac Naify de minha estante. Outro assombro, conforme podem constatar na imagem acima. Outono da Idade Média por até R$ 2.390,00 e os contos de Tostói por oitocentas pilas. Sei que existem os colecionadores (bibliófilos e bibliômanos). Mas, convenhamos, isso tudo parece mais devaneio do mercado que já se mostra, aliás, em frangalhos. Cada vez mais, penso que sebos e livrarias pedem para sucumbir assim como a indústria fonográfica, que nos roubava sem vergonha alguma na cara, com CDs que custavam um salário mínimo, logo após a conversão da moeda de URV para Real.

Duvido bastante que esses livros sejam vendidos por tais valores. Não consigo crer nisso. Na Estante Virtual, topei com obras de meu interesse ofertadas por valores absurdos. Nos dois casos, entrei em contato com os vendedores e fiz proposta, sem êxito. Passados anos, ainda vejo as mesmas obras à venda, mas agora com preços reduzidos. Só que, agora, não tenho mais interesse em tê-las, mesmo com valores dentro da realidade. Destaco isso porque muitos podem alegar que há interessados. E, francamente, ainda mais considerando o período difícil pelo qual passamos, duvido mesmo.

Insisto apenas nisso: o mercado livreiro, como conhecemos, está com os dias contados. Isso vale inclusive para obras eletrônicas de grandes editoras, que insistem em cobrar caro por elas. Em diversos momentos, topei com livros digitais pelo mesmo valor que os impressos. Por maior que seja a ginástica mental empreendida, isso não se justifica na maioria das hipóteses.

Acredito que, seguindo essa regra dos valores acima, devo possuir uma Toyota SW4 2020 em minhas estantes e, até hoje, não sabia.

Abraços inflacionados e até a próxima.


sábado, 3 de outubro de 2020

O Homem do Beco Medonho [ novela de Fabiano Caldeira ]

 

Capa do exemplar no aplicativo gratuito Kindle.

"Que tipo de homem bate punheta e não goza? Muito estranho."
- Jefferson acerca de "Medonho"

Sempre gostei do trabalho de meu amigo Fabiano Caldeira enquanto cartunista. Sua tira As Gêmeas, para mim, é sua melhor criação. Há outros trabalhos. Mas As Gêmeas são as melhores. Também sou leitor de seu blogue Socializando há quase dez anos. Sinto saudades da versão anterior dele (a 1.0), extinto. Mas tudo muda, inclusive a maneira de blogar. E fiquei contente quando vi seu crescimento como escritor, com obras bem recebidas na plataforma self-publish da Amazon. Contudo, podia apenas ficar satisfeito por isso, mas não o lia. É que seu trabalho volta-se, sobretudo, ao público gay. Essencialmente, sua prosa é erótica (hot, ou, como prefiro, pornográfica) para homens que gostam de transar com outros homens. Assim, seu nicho é composto quase que totalmente por gays e mulheres heterossexuais (contumazes consumidoras de material onde impera o homossexualismo masculino, algo que Freud explica). Até que ele publicou duas obras voltadas ao leitor geral: O Homem do Beco Medonho e Rita & Orestes. Li o primeiro e adorei, valendo a pena recomendar aqui.

A história nos é apresentada por três narradores: a) o escritor, b) Jefferson e c) alguém conhecido apenas por Medonho. Essa forma narrativa é interessante porque nos permite analisar a parcialidade dos envolvidos. Não é como Dom Casmurro, onde acreditamos piamente na canalhice de Capitu quando tudo nos é repassado sob a ótica de Bentinho. A primeira vez que mantive contato com estrutura narrativa assim foi, quando guri (onze ou doze anos de idade, acho), li o maravilhoso Versões Sobre Um Fuzilamento de Roberto Drummond (mais conhecido por Hilda Furacão).

O mote é simples: numa noite vazia, Jefferson tem o pneu do carro furado e é auxiliado pelo estranho morador de um beco medonho. O residente sinistro (conhecido apenas por "Medonho"), o arrasta naquela mesma noite não apenas para o interior de seu muquifo, mas, igualmente, para dentro uma mal contada história envolvendo assassinato, mafiosos brazucas, amigos sacanas e uma Ferrari icônica.

De antemão, ressalto haver elementos homossexuais no romance O Homem do Beco Medonho. Mas isso não atrapalha a leitura para quem não curte piroca. Vi mais homossexualismo explícito em A Casa dos Budas Ditosos de João Ubaldo Ribeiro (romance) e em Lost Girls (graphic novel escrita por Alan Moore e ilustrada por sua esposa Melinda) do que nas poucas nuances salpicadas na prosa de Fabiano. Sua linguagem, coloquial, reproduz algo similar ao que encontro nas tramas de Rubens Fonseca e Ítalo Moriconi. Na verdade, penso que Fabiano Caldeira poderia até se soltar mais, sem amarras de linguagem. Havendo contexto, não há porque ser polido em prosa assim. Felizmente, sua contrição não foi absoluta e, em diversos momentos, me senti lendo algum texto de Rubens Fonseca, como no trecho abaixo:

Ele peidou. Um odor horrível. Cheguei a pensar que tivesse cagado na calça. Sua pele sebosa ficou cada vez mais úmida. Suava frio. Que merda de veado aquele que sequer oferecia resistência? Um covarde.

Sua escrita é fluida e nos oferece leitura dinâmica. O texto é bem amarrado e enxuto. Não me vi, em momento algum, lendo excesso destinado a encher linguiça. A linguagem e as ações dos personagens situam a trama em nossa época. Contudo, para reforçar essa palatabilidade  com o tempo presente, penso que o autor poderia ser mais explícito ao citar produtos e serviço por marcas comumente usuais. Em dados momentos, ele se refere a “aplicativos” para mensagens e transporte. Seria interessante mencionar diretamente "WhatsApp" e "Uber", ou outros. A literatura contemporânea não se perde em descrições de ambientes como a clássica. Mas não deixa escapar, por exemplo, a marca da cerveja que o protagonista entorna, o modelo e quantos cavalos seu automóvel possui e os ingredientes presentes em seu jantar. Assim, por exemplo, são escritores que vão de Stephen King a Jô Soares. O primeiro não perde a oportunidade de citar a marca do martelo que será utilizado num crime (v. IT, A Coisa); o segundo precisa explicar, mesmo que brevemente, como é feita a Salade Aïda servida de entrada no Expresso do Oriente (v. O Homem Que Matou Getúlio Vargas). Gostaria, então, que o autor tivesse me dado mais a respeito da Ferrari que, de certa forma, é quase personagem da trama, não apenas se referindo a mesma como “lendária”.

A sintonia com a realidade é o melhor da história. Trata-se de um conto com pé na vida real, nos deixando com a sensação de plausibilidade. Há ressonância emocional em tudo, a sensação de que tudo aquilo seria facilmente possível de ocorrer numa grande metrópole. Cito, por exemplo, a passagem abaixo, me fazendo recordar quando um conhecido contabilista local (bicha enrustida) foi assassinado esganado por um de seus jovens casos secretos, há pouco tempo:

O cara era um daqueles casadões enrustidos. O chefe de família que criou as filhas na maior mordomia, regadas a lições de moral e bons costumes, sendo que ele mesmo gosta de sair por aí e dar o cu ao primeiro que vê pela frente. (…) Apenas agradeci e disse um “se cuida” com todo meu coração, pois homens como ele, se não mudarem de atitude, acabam vitimados pelo próprio desejo.

Ou quando comenta o sensacionalismo midiático sobre mortes quando a vítima é homossexual. E isso também me recordou quando morei na cidade de Campina Grande e um conhecido travesti nosso foi esfaqueado dezenas de vezes, vindo a óbito. A imprensa local, incontinenti, hasteou a bandeira da homofobia, crime de ódio, com os homens brancos (havia gravações de câmeras de segurança das lojas próximas) - possivelmente heterossexuais burgueses e futuros eleitores de Bolsonaro - agredindo o pobre veado. Houve passeata nas ruas, pedindo justiça contra a intolerância. Mas, em menos de um mês, descobriram os culpados: traficantes. O travesti era avião e devia grana ao patrão. Simples assim. Curiosamente, após isso, não houve mais passeatas nem notícia. Na trama, Ron, amigo do protagonista/narrador Jefferson, assim expõe a situação:

Quando encontram bichas mortas, assim, se não houver insinuação de que foi crime homofóbico, ninguém liga. Ninguém quer saber. Tem que falar, sim, que foi homofobia. Para o povo se sensibilizar.

Em resumo: é um bom livro. Você vai se divertir bastante lendo esta prosa curta (novela, conto longo?). Não há pretensão alguma a não ser entreter com uma trama simples e empolgante. Me mantive curioso quando, no meio da narrativa, outros contornos surgiram e a conclusão deixou ganchos para sequência. 

Quando guri, era comum ver romances de banca de revistas: brochuras em medidas diminutas, com preços relativamente acessíveis, títulos chamativos, capas bregas e que vendiam a rodo. Eu, guri, não era leitor daquelas publicações. Mas as via regularmente em residências variadas. As pessoas podiam não ser leitoras contumazes de clássicos da Literatura, mas se entretinham com ficções descompromissadas. Muitas vezes, este é o objetivo de um escritor: confeccionar história para mero entretenimento. E, olha… não é fácil escrever algo que mantenha o interesse do leitor por quase cem páginas. Fabiano Caldeira conseguiu atingir esse objetivo.

Se você gosta de narrativas despretensiosas e contemporâneas, a obra é ótima sugestão. E o melhor: esporadicamente, poderá acessá-la gratuitamente nas promoções da Amazon. Nesta próxima semana, dia 05, estará disponível, novamente, de graça. A leitura no aplicativo Kindle (celular ou tablet) é agradável. Se você possuir dispositivo Kindle, melhor ainda. Optando pela compra, custa apenas R$ 2,99, mais do que justo por 89 páginas de boa leitura.

Abraços medonhos e até a próxima.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Coronavírus com Stephen King


O politicamente correto me proíbe de criticar a China - vaca sagrada do comunismo - pelo vírus. O vírus chinês não veio da China e a autocracia absoluta do Partido Comunista que abafou casos e dados essenciais não abafou casos e dados essenciais. Assim, não falarei da China nem do vírus chinês.

A instituição pública onde labuto mandou quase todo mundo para casa (teletrabalho), devido ao medo de contágio pelo coronavírus (Sars-Cov-2, causador da doença Covid-19). Para mim, não mudou muita coisa, pois, embora exerça atividade de natureza externa, encontrei meios de, com uso de diversas ferramentas eletrônicas (e-mail, WhatsApp, Google Earth, Malote Digital etc.), resolver problemas sem sair de casa. Faço isso há anos. 

A escola de minha filha também fechou e as academias da cidade receberam mesma ordem. Em breve, fecharão comércios variados.

Por medo, estou evitando comer fora. Aliás, estou evitando sair, realmente. Se é para haver confinamento, que seja. E o que vier, que venha. Há anos e anos sei que colapsos sociais são fáceis de ocorrer e, aos trancos e barrancos, me preparei um pouco para eventualidades assim. A despensa está cheia até o teto. Remédios foram comprados. Possuo estoque de munição para arma de fogo e para de pressão (a gás). Estou com 3,5 mil litros de água guardados, tenho acesso para obter mais de graça aqui perto de casa e produzo energia elétrica devido a painéis fotovoltaicos. Ainda quanto à energia, guardei carvão e madeira boa para queima (possuo fogão à lenha) e três botijões de gás.

O relatado acima pode ser o diferencial à sobrevivência de minha família ou ser totalmente irrelevante em caso de hecatombe humana. Mas, como dizia minha mãe (e creio que a de vocês também): "Melhor prevenir do que...". Ainda preciso de gasolina e, logo amanhã cedo, comprarei 120 litros aqui perto. Pouco, mas ajuda bastante. Certamente, os maiores problemas surgirão pós-confinamento, após o colapso econômico e gente matando nas ruas por um saco de feijão. Portanto, todo excesso é pouco.

Enquanto estou confinado, ocupo meu tempo com leituras, cuidados com casa e videogame. Preciso me exercitar e talvez faça isso na rua, em algum lugar ermo, mais ou menos como recomendado pelo Scant. Quanto a livros, acho que esta é a oportunidade ideal para se dedicar a grandes volumes. E, considerando o momento, andei pensando... Qual melhor leitura do que A Dança da Morte do Rei do Maine? Na trama, o mundo é devastado pelo vírus Capitão Viajante, uma espécie de supergripe que se alastra sem dó. Acerca desse romance maravilhoso (um dos melhores a que tive acesso), recomendo minha resenha. A edição mais atual está disponível "de grátis" no LeLivros. Aproveite! Quando li, o fiz no meio físico, com letras pequenas, pouca margem e espaçamento diminuto. Hoje em dia, não faria isso. Não possuo mais visão para algo assim.

Enfim: fica a sugestão de leitura para quem estiver de quarentena. Se estiver na dúvida, dê uma lida na resenha acima indicada. E aproveite mesmo a ocasião para se deleitar com esta obra prima. Pode ser, inclusive, o último livro que você lerá.

Abraços virais e até a próxima (ou não!).

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O Quarto Reich, romance duvidoso de M.A. Costa



- Olha só, um thriller ruim!

James Williams, jornalista da outrora prestigiada revista Time, encontra-se numa profunda crise  de meia-idade diante de problemas conjugais e por ver, após tantos anos de dedicação ao "jornalismo" (seja lá isto nos dias de hoje), seu colega bem mais jovem de redação abocanhar o Pulitzer. Sua nova aposta profissional é, indo a Berlim, entrevistar o último grande líder nazista vivo, Rudolf Hess, o segundo no comando - durante muito tempo, na linha de sucessão - diante da ausência de Hitler. A trama se passa na segunda metade da década de '80.

Durante a entrevista com Hess, nonagenário na Prisão de Spandau, um segredo lhe é revelado. Na verdade, pistas para um segredo. É um passo para James embarcar num thriller tipicamente gringo, mas escrito por um brazuca. Na trama, nos deparamos com segredos ocultos do Reich, os quais ainda hoje nos despertam curiosidade e são objetos de trocentos livros e documentários: eugenia e clonagem, tecnologia avançada nazista, bases secretas na Antártica (a Nova Suábia reivindicada por Hitler, a mítica Base Neuschwabenland), sobrevida do Führer e, inclusive, viagens no tempo.

Sempre mantive uma queda por temas sérios relacionados à Segunda Grande Guerra e, quanto ao nazismo, acho curioso e divertido quando me deparo com histórias mirabolantes acerca desta ideologia-religião que, para mim, foi o resultado de um pout-pourri ocultista, temperado com socialismo não marxista e teorias eugenistas. Além disso, realmente, o avanço tecnológico do Estado germânico nos dá o que pensar. Tanto que o espólio mais significativo do pós-guerra foi a divisão de cérebros: quem recrutaria os melhores acadêmicos nazistas e lhes daria boa vida, noutro país, em troca de suas ideias? O primeiro evento que me vem à mente é a Operação Clipe de Papel norte-americana. Os chucrutes sempre se destacaram em artes, literatura, música, filosofia e ciências em geral.

O livro é mal escrito; mas, como todo thriller destinado a boas vendas, possui leitura relativamente dinâmica. Seguindo bobageiras da cultura popular, conseguiu misturar a origem oculta do nacional-socialismo na Sociedade de Thule e o ápice tecnológico do regime com as máquinas maravilhosas (wunderwaffen), a exemplo do Haunebu II, Gotha Go 229, as Feuerballs (foo fighters) e o mítico Die Glöcke (ou "O Sino), capaz de empreender viagens temporais ou, ao menos, a verificação de imagens passadas. Quanto à sobrevida de nazistas na Antártica, o assunto rendeu até filmes "B" (ou "Y") dos bons, como os deploráveis Nazistas no Centro da Terra (2012), Dead Snow (2009) e Frankenstein's Army (2013). O paradeiro da Câmara de Âmbar também não foi esquecido, no romance. Como afirmei: em menos de 250 páginas deu para fazer um grande shake. E, ainda, pega carona na discussão sobre o que realmente se passou pela cabeça de Rudolf Hess quando, sozinho, voou até a Escócia no afã de negociar a paz, em nome do Reich, com os ingleses. Nunca me desceu a ideia de que o cara apenas estava pinel, tampouco que conseguira se enforcar aos noventa e três anos e idade e semi-inválido.

Além do cinema, praticamente qualquer plataforma de mídia explorou a temática nazi hightech (como costumo defini-la). Quadrinhos estão inclusos. E até mesmo games. Quando guri, joguei (muito mal) Wolfenstein 3D - o qual utilizava design 2D apenas com simulação de algo mais elaborado. E, ali, numa realidade alternativa onde o Eixo havia ganho a guerra e instituído seu império global, a tecnologia dava direito até mesmo à sobrevida de Hitler com suportes mecânicos: um verdadeiro Cain de Robocop 2.

Gostei dos momentos em que o protagonista tece comparações entre as duas Berlins: "Mas, de resto, quatro décadas de ocupação - de cada lado - foram suficientes para diferenciá-las. Berlim ocidental é moderna, bem conservada, vibrante e linda. Berlim Oriental é mal-conservada, cinza, conservadora e opressora". E também foram válidas algumas introspecções filosóficas, como quando afirmam ao protagonista a facilidade com que a hegemonia nazi-fascista (e aqui incluo a comunista) poderia vingar, definitivamente, no futuro: "Williams, a civilização é um fino verniz e, se o arranharmos, a besta aprisionada escapará com facilidade. E essa besta somos nós e nós dominaremos o mundo!".

Também achei legal a breve referência a'O Apanhador no Campo de Centeio, pois adoro este romance, como explicitado aqui na postagem J.D. Salinger Por Daniel Clowes. Mas foi apenas uma referência relativamente erudita em uma obra, na sua essência, intelectualmente pobre.

Durante a leitura, encontrei erros de revisão. Exemplo: erro de digitação (ou algo do tipo), na página 94, segundo parágrafo, com "ativesse" (junto) ao invés de "a tivesse" (separado). E, além dessas pequenas bobagens quase insignificantes, me desagradei com as notas do autor ao final do romance, e não como rodapés. É chato ficar indo ao final e retornando no meio da leitura.

No geral, achei um dispensável. Como dito acima: leitura razoável; mas com elementos concatenados sem muitas pontas solta (até porque não possui complexidade literária alguma), exploração pouco inteligente da ficção histórica e com gancho para continuação. Achei meio inconsistente a forma como o protagonista consegue escapar das garras dos nazistas. Seu principal captor foi bastante crédulo para isso e os demais nem pareciam ser os grandes e sagazes oficiais que quase conquistaram o mundo e, no momento, conseguiam se manter ricos, poderosos e em silêncio para, mais à frente, realmente dominá-lo. Pareceu meio que um deus ex machina na trama toda para conseguir chegar ao desfecho.

Quanto ao acabamento, até capricharam um pouco: capa dura, papel amarelado similar ao pólen (soft ou bold), com boa gramatura, margens e espaçamento decentes. A visão agradece. Ao final, como apêndice, há um pequeno dossiê sobre os temas abordados na obra, inclusive com fotografias. E a compra pode ser realizada por Whatsapp, e-mail do autor e pela Amazon. In casu, adquiri por conta comercial de Whatsapp. 

O envio foi rápido, porém desleixado. Apenas largaram o volume num envelope simples, sem proteção com papelão ou plástico bolha. Todos sabem que os Correios não têm responsabilidade e que danificam encomendas desprotegidas. Meu volume chegou danificado na lombada. Sinto-me obrigado a destacar tudo isso. Preciso ser franco ao dizer que até gostei do romance  como forma de mera leitura descompromissada e passatempo e o recomendo para quem está com bastante tempo livre para ler bobagens do gênero, mas não indico a compra a não ser em sebos e grandes livrarias, para evitar problemas com entrega.

Percebi que, em dados momentos, o autor faz questão de transparecer sua ojeriza pelos nazistas. Em tempo onde tudo pode ser mal interpretado, parece assim agir para dizer ao leitor: "Olha só, escrevi esta parada mas sou do bem, tá ligado?". Acho isso desnecessário, em termos de literatura e entretenimento, enfim. Mas... cada um com seu ponto de vista, ainda mais em época onde o ex-Secretário da Cultura, Roberto Alvim, cita Joseph Goebbels e por isso leva um pé na bunda (merecidamente).

Numa escala de zero a dez, classificaria a obra com uma nota 3,5. Como ando com muitos livros consagrados para ler, além da fila imensa de quadrinhos, filmes e seriados para assistir, preciso passar longe de leituras assim. A vida é curta demais para gastar grana com escritos meio-boca. Quando possível, tentarei trocar meu exemplar em sebos.

Abraços conspiradores e até a próxima.




Ao menos possui figurinhas.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Um mundo sem erudição em Jogador N.° 1

Pôster Ready Player One by Harlan Elam


- E o que é real, o que é?
Animatrix, Uma história de detetive


Ernest Cline encontrou o mote perfeito para escrever um romance declarando seu amor aos anos '80, especialmente em relação aos videogames. Em seu livro Jogador N.° 1, o quase trilionário James Halliday, devastado pelo câncer, próximo do fim e sem herdeiros, elabora o concurso a se iniciar em seu post mortem. Usuários do OASIS, seu super videogame de profunda imersão em realidade virtual, deverão encontrar o misterioso easter egg plantando, pelo magnata, no sistema, após três fases de jogo. Em todas as fases, o conhecimento em cultura pop oitentista é imprescindível: música, séries, filmes, games e tudo quanto é porcaria. Surgem, então, os caça-ovos e oologistas culturais, empreitada onde diletante (noob?) não entra.

OASIS não é apenas acrônimo para Ontologically Anthropocentric Sensory Immersive Simulation. A realidade criada após imersão representa, deveras, um oásis em meio a imundície do anos de 2044, época da história: fome, doenças, crise energética, falta de habitação e violência extrema. Você pode sobreviver miseravelmente num cubículo se puder existir a maior parte do tempo no OASIS, onde trabalhará, estudará e terá a maior parte de sua interação social. Prático e agradável, em oposição à realidade.

O título original do livro é bem mais interessante do que o nacional. Ready Player One possui relação com a obra ao destacar aquele momento onde, nos arcades (fliperama com monitor), verificávamos esta mensagem antes do início do jogo. Além disso, é a mensagem escolhida por James Halliday para o momento pós login em seu magnífico sistema.

Ernest Cline é co-roteirista da adaptação ao cinema, realizada por Steven Spielberg. Este, aliás, nome constantemente citado na obra escrita, diante de sua relevância à telona nos anos '80 e seguintes. Não preciso, aqui, me perder citando seus filmes icônicos. O bacana nesta adaptação é não tentarem ser fiel à ideia primeva. A produção cinematográfica é simplória. Os três níveis percorridos pelo protagonista da trama - o jogador Wade Watt, avatar denominado Parzival, quando imerso  - são bem extensos, complexos e apegados a minúcias culturais para sua resolução. Não havia como levar tudo às telas.

Transitei bem tanto pelo filme quanto pelo romance, pois o refugo cultural americano da década perdida tem papel relevante em minha formação. Quanto a jogos eletrônicos, conquanto eu não seja gamer, convivi bastante com videogames da 2ª até a 4ª geração, como mencionei em postagem anterior. Além disso, por ser curioso em tecnologia, conhecia muito bem a pré-geração de games e dados sobre a produção de consoles e cartuchos durante anos a fio. Mesmo assim, em ambas mídias, fiquei meio perplexo como o futuro de Cline é pobre não apenas materialmente, num mundo colapsado economicamente. Ele também é pobre culturalmente. Não há resquício de erudição na Terra. O único conhecimento valorizado é acerca de toneladas de lixo popular.

A porcaria abunda na produção cultural popular. Isso é fato. Claro que, ao chafurdar no lodaçal, você encontra realizações que merecem, realmente, recordação constante. Assim, por exemplo, me deliciei com tantas menções aos filmes de John Hughes, os quais me faziam querer ser um jovem ianque na Shermer High School. No filme, há destaque especial a'O Iluminado de Stanley Kubrick, adaptação odiada por Stephen King. Achei este momento legal, embora não exista no livro. Neste, os filmes mais destacados são três que igualmente amo: Jogos de Guerra com Matthew Broderick, Blade Runner (obra prima cyberpunk de Ridley Scott) e Monty Python - Em Busca do Cálice Sagrado. O primeiro foi relevante em minha infância e o terceiro, o qual conheço desde adolescente, possui maior relevância emocional em minha vida após me ser reapresentado por alguém especial, quando na vida adulta. Os Cavaleiros que dizem "Ni", na trupe de Python, ganham contornos mágicos em nossas vidas quando fazem sorrir, a nosso lado, a pessoa amada.

O livro é divido em três partes. Ou melhor: três níveis de jogo. A cada nível, os caça-ovos precisam encontrar chaves (cobre, jade e cristal) para abrir três portões. Nessa empreitada, precisam disputar alguma partida de videogame vintage, associar conhecimentos culturais diversos e representar alguma personagem cinematográfica, do início ao final, ganhando ou perdendo pontos por fala, ação e até mesmo entonação de voz. O grande jogo de Halliday é, essencialmente, um RPG colossal.

Outro mérito do livro é destacar os jogos de tabuleiro, com ênfase em Dungeons & Dragons e constantes menções ao seu co-criador Gary Gygax. Logo após, mencionar a evolução do RPG para computadores pessoais jurássicos, onde você se divertia lendo o texto gradualmente lançado no ecrã, sem imagens, e respondendo às perguntas. Daí, o jogo seguiria o caminho "x" ou "y" a cada resposta ou conjunto de respostas. Quando criança, via pessoas mais velhas jogando RPG de mesa, com canetas, caderninhos para anotações e caralhada de dados. Achava fascinante, mas nunca joguei. Apenas admirava a beleza dos livros, dados e alguns cartões. Também cheguei a ver jogos vendidos como suprimento de informática, até mesmo em disquetes de 5 ¼”. Quando guri, tive acessos esporádicos a um PC monstruoso com esse floppy disk, mas eu era muito pequeno e não sabia como usar aquele troço e sequer recordo que máquina era aquela. Mas me encantava.

Ainda sobre Gary Gygax, em dado momento seu nome é posto ao lado de Bill Gates. E isso me recordou algo: a relação entre Ogden "Og" Morrow e James Halliday, no romance, tem muito a ver com a amizade entre Gates e Paul Allen, a qual mencionei brevemente em postagem anterior. "Og" possui muito de Paul Allen, especialmente o estilo de vida descolado, associando lucro a fascismo e tendo saído cedo da vida corporativa para desfrutar seus bilhões num cotidiano de luxo e excessos, enquanto vomitava mantras batidos sobre os males do capitalismo.


Tributo aos anos 80' por Jim'll Paint It

Voltemos à pobreza cultural da obra. No filme, não encontramos nenhuma referência erudita. Mas no romance, há ao menos umazinha. E decisiva! No cinema, apenas no jogo Atari Adventure é onde se encontra o enigma final a ser solucionado. Sempre gostei deste joguinho e recordo de minha infância, conquanto nunca tenha encontrando o easter egg de seu criador, Warren Robinett. Em alguns documentários como A Era do Videogame ou A História do Videogame, sabemos que a Atari tornou-se arbitrária com seus designers e programadores, quando foi adquirida pela Warner e chefiada por Ray Kassar, ignorante no assunto. Quando programadores geniais a exemplo de David Crane exigiram melhores salários e reconhecimento, foi de Ray a célebre e estúpida colocação de que não haveria diferença entre o designer de sucessos comerciais e o "John Smith" que montava o cartucho na esteira de produção sabe-se-lá-onde. É como querer atribuir idênticos salários a um Médico Cirurgião e ao zelador da clínica. Não sejamos românticos, colegas. Trabalhos distintos pedem prestígios e retornos distintos. Logo após, vários caras saíram daquela bodega e montaram a hoje poderosa Activision. Robinett foi mais brincalhão: escondeu seu nome no jogo Adventure, atestando ter sido sua, e não da Warner, aquela criação. Já no romance, antes de Adventure, Wade/Parzival precisa jogar Tempest, também da Atari. Ele é pego de surpresa com o desafio, mas as pistas foram deixadas às claras pelo magnata defunto.

Na trama escrita, a arrogante garota geek Samantha Cook - vulgo Art3mis - afirma que Tempest, no terceiro nível, seria óbvio. O de cujus havia consignado em seus registros que "É preciso deixar um pouco mais difícil essa conquista, para que a vitória fácil demais não desmereça o preço". Tal citação é de Shakespeare em sua última peça: A Tempestade.

Enfim: não sou erudito. Mas sei que devemos manter contato com a erudição e não ceder integralmente à estética maleável, açucarada e gordurosa da cultura pop. Certamente, nesta, encontramos bons e relevantes feitos à nossa formação. O ponto está no equilíbrio entre ouvir os grunhidos roucos de Axel em Guns 'n Roses e as variações para cravo de Johann Sebastian Bach. Existência apenas de punhetação no mundo que hoje denominamos "geek" (palavrinha tão fedida quanto "nerd") é, creio, miserável.

Esta postagem foi elaborada mais para quem ao menos assistiu ao filme. Por isso não me estendi tanto quanto ao enredo e demais detalhes e referências. De qualquer forma, se você desconhece a história, assista-a: é bem divertida para quem está na casa dos quarenta anos e manteve contato com cultura pop em sua pobre formação em clássicos da Sessão da Tarde e fichas de fliperama. Quanto ao livro: boa leitura, dinâmica, esperta e faz valer o tempo dedicado. Certamente não é uma obra prima e, creio, sequer o autor nutriu tal afã.

Durante algumas passagens, você sentirá o texto meio artificial, como se o autor tentasse forçar a barra para encaixar o máximo de referências culturais por página. Mesmo assim, o resultado, como alhures dito, foi satisfatório. O oposto se deu em Armada, seu segundo romance o qual, creio, comentarei mais à frente neste blogue. Armada é bacana se lido descompromissadamente; porém, pobre ao tentar repetir a fórmula de Jogador, com tanta forçação de barra nas referências sci-fi que pode, às vezes, dar vontade de abandonar a leitura.

Fico por aqui. Abraços oitentistas e até a próxima.



Porque ler de graça é mais gostoso...