Recordo bem do sucesso d'A Estrada do Futuro de Bill Gates, quando eu ainda era imberbe (palavra linda!). Via unidades à venda na vitrine lateral da banca de revistas Terceiro Mundo e na Livraria Estudantil, pontos comerciais de minha antiga cidade. Também era figurinha fácil circulante em mãos de pessoas antenadas com o mundo digital, interessados por internet e computação quando este terreno era insipiente em nosso país. A capa do livro - o qual nunca li - ficou marcada em minha massa cinzenta. O próprio Gates é figura sempre recorrente em minha vida. Meu primeiro computador - AMD K6 2 500 - rodava o Windows 98 e, neste exato momento, utilizo o Windows 10. Mês passado comprei um XBox para minha filha. Enfim, se você habita este planeta, não há como desconhecer Bill Gates e sua criação.
Esses dias assisti ao documentário original Netflix O Código Bill Gates e achei proveitoso. Gostando ou não do magnata - e é sempre esporte divertido entre pobres tentar diminuir as realizações dos ricos -, conhecer um pouco das figuras mais proeminentes da História nunca é tempo perdido. Veja bem: o sujeito pode realmente ser até um tremendo filho da mãe, vai-se saber. Mas e daí? Convivo com pessoas escrotas no cotidiano cujas contribuições à humanidade são comer, cuspir e defecar. Ao menos Gates fundou a Microsoft e, assim, popularizou o uso dos PCs.
Achei o filme meio capenga em alguns momentos; envernizado na maior parte do tempo mas, no geral, aproveitável. Não me deixou com sensação de tempo perdido, conquanto seja puramente um material de propaganda política da Microsoft e da Fundação Bill & Melinda Gates. Então vamos a alguns apontamentos pessoais, minhas modestas impressões.
Tentaram dar ênfase ao Gates pai de família, preocupado com o tempo destinado aos filhos e, como todos os mortais, com pontuais crises conjugais. Seu lado engajado, claro, é focado nas obras humanitárias ao redor do globo, tentando encontrar destino limpo para cocô africano ou combatendo a poliomielite, isso quando não está preocupado com o aquecimento global. Como todo metacapitalista, o "nerd" da terceira idade adotou a agenda e o jeito ONU de ser, gastando com ações sociais globais enquanto aumenta suas relações com o poder político. Destaco: essa estratégia remonta à dinastia Rockefeller que, ao ser vítima do poder estatal em seu monopólio energético, resolveu se fazer mais presente na vida social americana e se atrelar, mesmo nos bastidores, ao poder burocrático. Gates, aliás, quase se deu muito mal devido a ações anti monopólio. Esperto, fez o dever de casa e não errou mais. Ao menos, claro, está gastando milhões com vacinas na Nigéria. Já eu precisei dividir em seis vezes a imunização de minha filha contra meningite B e ACWY, as quais não são ofertadas na rede pública e custam R$ 1.600.00.
Gates é pintado como um gênio da programação. E realmente o foi desde criança, como dito no documentário. Mas em momento algum, ao falarem do sistema DOS, citaram Tim Paterson e focaram apenas no dotes do executivo. Achei isso meio rasteiro. Citar Paterson não diminuiria a genialidade de seu contratante. Este, sim, tinha visão a longuíssimo prazo e sabia o que estava construindo para o mundo e para seu bolso.
Paul Allen é citado com parcimônia. E por um lado foi bom. Sempre o vi como mais um hipócrita: contrário ao regime de mercado no discurso, mas que não abria mão do caviar. Como é sabido, o co-fundador da Microsoft saiu da empresa porque alegava não querer fazer parte de algo grande, que movimentasse tanta grana. Era romântico (da boca pra fora). Na prática, morreu podre de rico, dono de uma bilionária carteira de investimentos e ostentando luxos como nem o próprio Gates ostenta. Lembrava bastante Steve Jobs, com discursos holísticos na ponta da língua e de alma podre, maltratando até mesmo amigos pessoais no afã de ampliar seu império tecnológico.
A grande sacada do filme, penso, foi associar os desafios de Gates quando à frente da corporação com os entraves encontrados por ele em suas obras humanitárias. Muitas vezes, as mesmas estratégias aplicadas para se tornar o homem mais rico da Terra foram aplicadas para gastar essa grana com fezes humanas e imunização. Também chama atenção o lado analógico do homem pioneiro nos computadores domésticos: gosta de papel, anda com sacolas de livros, não é visto com smartphones e costuma usar anotações de punho. Além disso, gosta de cartas e jogos de tabuleiro nas horas vagas.
Após ver a produção, continuo enxergando o magnata como alguém extremamente sagaz, capaz de tecer mil e uma probabilidades em sua cachola, dotado de grande poder de visão no longuíssimo prazo. Ainda o vejo como um ser humano fleumático, destituído de grande empatia pelo humano mas sedento por embates e aventuras. Gates, obviamente, é daqueles exemplares que adotam a racionalidade quase como um monastério. Do contrário, não teria fundado a Microsoft e certamente a História recente seria diferente. O Windows foi crucial para o acesso dos meros mortais à chamada microinformática.
Enfim: no catálogo de documentários da Netflix, acho que este é um dos que valem a pena.
Abraços cibernéticos e até a próxima.
- P.s.: The Bill & Melinda Gates Foundation, ao lado da Open Society Foundations e tantas outras fortunas modernas, são os grandes financiadores dos Guerreiros da Justiça Social ao redor do globo.