sexta-feira, 26 de julho de 2024

O inferno íntimo de Angela Orosco


Era como se eu visse o futuro. E o futuro não fizesse nenhum sentido.

 Black Hole de Charles Burns

O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores.

As Dores do Mundo de Schopenhauer

O remake de Silent Hill 2 está prestes a sair do forno e já falei aqui acerca de meu apreço por essa obra prima eletrônica. E andei recordando a personagem Angela Orosco - que aparece pouco durante a campanha, mas cuja triste história nos toca a cada momento.

Assim que começamos a jogatina, tentando encontrar um caminho para entrar na cidade amaldiçoada, passamos pelo cemitério, onde Angela observa as lápides, possivelmente em busca de informações sobre seus parentes: mãe, pai e irmão. Ela nos diz o caminho que devemos tomar. Logo após, a encontramos deitada no chão de um apartamento, segurando uma faca. Esta faca, aliás, nos será entregue e não terá função alguma a não ser permanecer em nosso inventário. Dizem que, se o jogador olhar bastante para a faca, ele terá um final específico dentre os seis disponíveis. No meio do jogo, encontramos novamente a misteriosa mulher e precisamos defendê-la do espectro de seu próprio genitor, cuja forma emblemática remete a abusos sexuais sob cobertas, numa cama estreita. Pior do que essa descoberta é saber que ela também era abusada por seu irmão; e sua mãe lhe atribuía a culpa por tudo.

Já próximo ao final, Angela nos confronta nas escadarias em chamas do Hotel Lakeview. Ela pede a faca de volta, não sendo atendida por nós quanto a isso. Reclama do calor e concluímos que o fogaréu não é físico, mas espiritual, pois James também o sente, sem reparar no possível evento físico à volta. Como na cidade de Silent Hill todos são convocados para confrontar a si mesmos, na vez de Angela, esta não encontrou redenção, apenas entregando-se ao triste fim do inferno íntimo eterno, às chamas da danação.

Silent Hill foi realmente uma grande franquia de jogos eletrônicos. Ao menos é o que posso falar pelos três primeiros volumes. Uma pena que a Konami não se importe com seu legado. É o que parece, após anos e anos sem nada útil do título, o insosso The Short Message (que pelo menos foi disponibilizado de graça) e, agora, com algo que parece um remake mal feito do excepcional Silent Hill 2.

Aguardemos o que está por vir. Vou ficando por aqui. Abraços condenados e até a próxima.

Postagens sugeridas:

a) Silent Hill, culpa e punição

b) O puzzle do piano e gritos de dor


quinta-feira, 11 de julho de 2024

O coração amargo de Stephan Crane

Imagens geradas por inteligência artificial

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e o comia…
Disse-lhe: “É bom, amigo?”
“É amargo – respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.”

Eu desconhecia o poema acima e seu autor, até encontrá-lo na primeira página do miolo da revista Calafrio n.º 01, lançada em 1981. Foi um gibi sempre presente em minha infância, pois era um dos títulos esporadicamente adquiridos pelo meu irmão, depois, li e reli todos os números em scans. Atualmente, o selo Ink&Blood Comics publica o título, mas ainda não tive nenhum exemplar em mãos para avaliar. Enfim: lá no início da Calafrio encontra-se este poema obscuro. Pelo que pesquisei, seu advento à luz em língua portuguesa se deve, massivamente, ao livro As Magias (1987) do lusitano Herberto Helder. Mas é curioso como, seis anos antes, o editor e quadrinista Rodolfo Zalla já epigrafava seu novo título de terror com esses versos tão significativos.

Há alguns anos esse poema me serve para reflexão em momentos sombrios, quando estou preenchido por sentimentos malignos poderosos e sou assediado por entidades obsessoras que, em algum momento de deslize, podem se apoderar integralmente de mim. A criatura nua e brutal pode ser qualquer um de nós, em episódios de tristeza, amargura ou desespero. E o tempo me ensinou que a melhor forma de bater de frente com a amargura é saboreando-a até amaciar o paladar. É como ter contato com micróbios na infância para fortalecer o sistema imunológico ou praticar mitridização, ingerindo doses quase homeopáticas de substâncias letais. Essencialmente: o que não mata, fortalece.

Certamente, alguns creem que devemos buscar a luz para afastar as sombras. E também acredito nisso. Só que nem sempre as luzes são atingíveis. Há problemas para os quais não existem resoluções; e resiliência (palavrinha tão na moda) é a solução, nem que seja abraçando - ou até mesmo degustando - a amargura. Não importa o caminho, desde que você consiga sobreviver em relativa paz. Aliás, nas histórias dos Santos (homens que atingiram níveis mais elevados de existência) nunca houve caminhos de pétalas de rosas, ladrilhos dourados e luz do sol amena: mas muito percalço e sofrimento ao ponto da dor tornar-se lugar-comum. É como tatuar o corpo: só dói nas primeiras vezes. Não há como não recordar o primeiro verso do soneto de Pena Filho: "O quanto perco em luz conquisto em sombra".

Abraços amargurados e até a próxima.