terça-feira, 12 de abril de 2022

Deserto Particular [ Cinema, 2021 ]


© Foto por Tovinho Regis

Atravessava ponte, ai que alegria
Chegava em Juazeiro, Juazeiro da Bahia

(Jorge de Altinho)

Às vezes penso por que não fui para a vida acadêmica ou carreira militar. São bons lugares para bestar, ganhando bem. Tenho parentes professores nas "federais" tupiniquins e é só moleza. Alguns ainda estão em casa devido à pandemia eterna, gritando "Fora Bozo!" e com o holerite em dia. E, quando voltarem a lecionar, serão no máximo dois dias na semana, pois são poucas horas de sala de aula por semana e o restante é embromação. Já militares se aposentam cedo e ainda ganham um troco quando partem para inatividade, como forma de carinho do Estado. O trabalho é leve, basicamente administrativo e de treinamento para o caso de eventual estado de defesa etc. Nunca vi militar pegar no pesado. E nem devem, aliás. Se não há guerra, que curtam a vida lendo as ordens do dia sobre as ordens do dia para as ordens do dia, até o dia acabar. Já o serviço público onde me encontro há quase dezoito anos está indo para a pocilga e não tenho mais ritmo nem saco para estudar e pular fora. Aguardo apenas o naufrágio. Mas vamos lá...

Tenho uma casa que nem queria vender. Então um conhecido que estava na iminência de reformar como Capitão, morando há uns anos em vilas militares pelo Brasil, me disse querer comprar o imóvel, pois sairia da residência funcional e ficaria morando na cidade, pois criara vínculos na região (devido a parentes da esposa) e porque continuaria atuando no serviço militar, reformado, mas como prestador de serviço civil. Uma das inúmeras situações esquisitas encontradas em nosso serviço público. 

A casa era ideal para ele: perto do serviço e com garagem imensa (ele possui vários veículos). Então ele me ligou certa vez e disse que, no dia seguinte, iria até mim fechar o negócio, aproveitando o tempo até lá para aguardar a confirmação de Deus. É um cidadão religioso, notório por isso. Qual meu espanto quando, no dia seguinte, ele me procura com o pastor de sua agremiação religiosa para ver o imóvel. A confirmação de Deus era o aval pastoral. Pensei que seria oração! E, no caso, o pastor tinha outras casas em mente, para seu fiel. Então o colega milico desistiu do negócio. Para mim, tanto faz. O imóvel nem estava à venda. Ele que me procurou dizendo ter interesse! Já deve ter se arrependido.

Tenho um colega de trabalho que é Batista. Ele entrega ao pastor dez por cento de sua renda líquida. Certa vez, num jantar, me confidenciou ser um homem mau, que possui bastante maldade dentro de si e narrou alguns de seus costumes passados. Então a religião lhe fez bem, ajudando-o a ser alguém melhor. E creio nisso. Não tenho religião. A última vez que demorei numa Igreja foi para o batismo de minha filha. Minha esposa gosta de igrejas católicas e vai com a família dela. Mas defendo todas as formas de religião, pois, em regra, por uma visão meramente utilitarista da coisa, faz bem: retira o sujeito das drogas, do alcoolismo e o ajuda a tentar ser alguém melhor. Isso além das obras sociais e das contribuições históricas à saúde, ciência, artes e educação (no caso do cristianismo, claro). Então é isso: religião é uma coisa boa, o problema é a mente fraca das pessoas. Dito isso, vamos a este duvidoso filme nacional: Deserto Particular.


Daniel (Antônio Saboia) é um policial curitibano que fez merda no serviço. Não fica claro, mas me parece que, durante a formação de oficiais novatos, ele levou um aluno ao coma. Enquanto sua cabeça está sob a guilhotina, aguardando julgamento e sanções administrativas (está suspenso e sem grana), seu pai encontra-se esclerosado, cagando nas calças e com o pé na cova. Sua irmã lhe diz que se encontrou como lésbica (choque!) e ele precisa ganhar a vida, temporariamente, como segurança em festas privadas. Seu único alento é a amizade virtual com Sara: moradora de Sobradinho, cidade baiana. Então, repentinamente, Sara deixa de responder às suas mensagens e ligações. E ele, com a cabeça fodida, vai de Curitiba até Sobradinho numa Chevrolet D-20 cabine dupla que eu, particularmente, adoro. E, chegando lá, descobre que Sara é Robson (Pedro Fasanaro), um pequeno gay da cara espinhenta com um desejo reprimido de ser mocinha. Para quem estava com a cabeça fodida de tanto problema, o sujeito quase surta de vez, pois deu uns amassos no jovenzinho, com direito a pegada na piroca para descobrir se é macho ou fêmea.

O filme consegue ser bonito. Sai do frio para a aridez nordestina. Acho, no entanto, que exploraram mal a paisagem em torno do Velho Chico. A barragem de sobradinho e seu entorno são lugares exuberantes e, na tela, pareceu tudo meio morto. Tanto Juazeiro quanto Petrolina (abordadas brevemente no filme) são cidades lindas e, para mim, pouco lugar é tão bom para tomar uma cerveja quanto suas orlas. Mas, no geral, a fotografia me encantou, especialmente pela ambientação noturna. A cena onde Daniel descobre que "ela é ele" se deu perto da eclusa, lugar que gosto bastante. E à noite! Se esteticamente a produção agrada, no enredo deixa aquele cheiro de afetação. A avó de Robson, evangélica ferrenha, une-se ao pastor para lhe curar do "males do homossexualismo", tão logo o encontra usando vestido. Ele é levado a um ex-travesti (Flávio Bauraqui), hoje irmão atuante no templo, que trocou a felicidade pela salvação, conforme suas palavras. Mais à frente, o pastor encontra fotografia de Robson como Sara, e ameaça expô-lo (exposed consagrado?), caso não se liberte das tentações do capiroto. Então ele decide ir para o Rio de Janeiro, não sem antes ter uma noite de sexo ardente, num banheiro de rodoviária, com o Daniel, mais manso após meditar a respeito de sua condição. Infelizmente, num filme com duas horas de duração, não há como desenvolver personagens assim, sem ser abruptamente. Mas até que, nos poucos minutos disponíveis e após diálogos bem escolhidos, as conversas entre Daniel e Robson servem bem para mostrar um pouco dessa "conversão" de Daniel. Ou melhor: dessa aceitação.

Infelizmente, o filme precisa "sambar na cara da sociedade patriarcal opressora machista e religiosamente reacionária". E mostrar o cristianismo como adversário da comunidade LGBTQYZ+H2O foi de mau gosto tremendo e, penso, um desfavor tanto aos cristãos quanto aos gays. Quando o "irmão" interpretado por Flávio Bauraqui se afirma infeliz por deixar de ser travesti, mas árduo na sua busca por salvação, a mensagem anticristã é ostensiva e parece declaração de guerra. E, assim que a vi, lembrei logo dos amigos gays, lésbicas e transexuais de minha esposa, com os quais mantemos relativo contato, todos frequentadores de igrejas e templos, se dando bem ali, sendo quem são. Um deles até canta toda semana num templo evangélico! Até onde sabemos, ninguém lhe pergunta sobre o furico. O irmão ex travesti poderia estar feliz em sua escolha, assim como Sara/Robson, igualmente, também poderia se manter feliz sendo quem. Tão simples. Quem precisar e quiser, que se encontre na religião, em templos, igrejas, sinagogas, terreiros ou explodindo-se em troca de quarenta virgens.

Na postagem anterior, falei da bancarrota do Oscar enquanto instituição cultural que já foi. E, creio, Deserto Particular poderia ser algo melhor, um belo filme como Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), e não um lixo como Moonlight (2016). Mas, para ser o candidato brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a lacração precisa ser ostensiva. Além disso, se auto proclamou "filme sobre amor em tempos de desamor". Francamente, não sei de onde essas pessoas retiraram a ideia que já houve tempos de amor e paz plenos na humanidade. Há uma história de Constantine que gosto bastante, chama-se Todos os dias seguintes, da brilhante fase Garth Ennis e Steve Dillon. Ainda a tenho na coleção, num gibi da extinta Metal Pesado - Hellblazer n.º 03, de 1998. Na trama, John encontra uma entidade vampírica antiga, vagante do espaço sideral, que pousou na Terra na aurora dos tempos e derramou o sangue do primeiro homem. Mas ele diz: "Antes de eu tê-lo encontrado, ele tinha matado o seu filho mais velho, em uma briga por uma manga.". Pela visão cristã, todos nascemos infectados pelo pecado original. Apenas com força de vontade, fé e meditação (oração), nos tornamos pessoas melhores. A ideia que o homem nasce bom é delírio de Rousseau, o primeiro esquerdista da História, sem qualquer base histórica, humana, psíquica etc. Rousseau não cuidou nem dos próprios filhos, nunca trabalhou e, realmente, não conheceu a vida, assim como as pessoas responsáveis por Deserto Particular. Na aurora do homem, Caim matou Abel. Até Ötzi foi assassinado! Alguém escalou 3.000 metros, há cinco mil anos, no gelo, para matar ÖtziAí vem essa turma cheia de pó falar em "tempos de desamor", com filme meio-boca para curar os "males do conservadorismo".

Achei bacana, entretanto, a escolha de Total Eclipse of the Heart para dois momentos relevantes do filme. Nada como o mais brega do flashback para contrastar com os desertos nordestinos.

Abraços eclípticos e até a próxima.



Imagens de minha edição


14 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. A expressão do stephen rea (que depois trabalharia com jordan noutros filmes, como em entrevista com o vampiro) é o ponto alto da coisa!

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  2. Rapaz, eu tenho certeza que, se você tivesse prometido o dízimo do valor da venda pro pastor, ele teria dado a sua benção e o Capitão teria fechado negócio.

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    1. Não sei porque meu comentário anterior saiu como anônimo. Marreta do Azarão

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    2. Fala, Marreta. Certamente vc deve ter postado seu comentário sem estar logado, no momento, em sua conta Google. Pelo que me disseram, o pastor tinha outros imóveis em mente. Vai-se saber se estava até atuando de corretor. E faz sentido. Se um fiel vender um imóvel a outro fiel, o pastor poderia exigir 10% sobre eventual lucro.

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  3. o brasil deu errado como sociedade
    aqui é um caos
    belo post
    o serviço publico tá afundando há décadas. vamos esperar pra ver o futuro
    os seres humanos, independente de suas crenças e outras características, não param de fazer merda. não tem jeito
    me relaciono ao minimo com outros seres humanos, até pra manter minha sanidade
    pretendo segui em vida semi-contemplativa até a morte, ahahhahahahah


    abs!

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    1. Olá, Scant. Seu posicionamento é lúcido. Eu mesmo mantenho círculos sociais ativos. Mas tão logo sinto cheiro e carniça, pulo fora sem olhar para trás, meio q dando de um louco, por assim dizer.
      O ideal seria viver no mato mais profundo. Mas tenho família e não posso isolar minha filha da realidade social.
      Abraços!

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    2. "não tenho mais ritmo nem saco para estudar e pular fora. Aguardo apenas o naufrágio. " - já pensou em empreender? tipo construir e vender ou alugar casas?

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    3. Vou te contar antes duas histórias recentes.

      Há alguns anos, conheci um empregado de uma fábrica de cimento Nassau, em nossa região. Antes do grupo falir, ele já tinha começado a investir em três coisas: supermercado, lotérica e construção de casas para venda. Tomou no lombo, na lotérica, com as exigências cada vez mais esdrúxulas da Procuradoria do Trabalho quanto à segurança dos empregados. Depois, para completar, um pedreiro foi trabalhar meio mamado e morreu eletrocutado. Na VT, dividiu-se a responsabilidade entre de cujus e empregador, e foi condenado a pagar R$ 50.000,00 de danos aos pais do “trabaiadô” (não tinha filhos nem esposa). Em recurso, o Tribunal achou pouco e reformou para MEIO MILHÃO DE REAIS. O empresário emergente morreu aos 42 anos, no final de 2020, de covid. Nunca aproveitou a grana e deixou $$$ para a viúva, para multa do MPT e para os pais do pedreiro.

      Este ano já chegou coisa nova para nós. Um pedreiro retirou a proteção da serra circular para trabalhar melhor na parte de serralheria (corte de ferros). É uma proteção de metal, com mola, que impede acidente. Mas é chato usá-la (eu mesmo tenho uma serra circular e retirei da minha também). E a máquina era dele! Mas, em serviço a um pequeno construtor numa cidade com menos de vinte mil habitantes (também em nossa jurisdição), perdeu o dedão. Está pedindo 250 mil e vai levar! Estão aí no rame-rame de acordo!

      Em resumo: empreender, no Brasil, é perigoso, a não ser para quem é amigo do rei e tem contratos com o poder público. Posso sair com mais problemas do que retorno. Tenho uma vida boa. Vivo bem com o que tenho e o que ganho. Tenho uma casa legal, um carro do ano que ainda aguentará bastante tranco (troquei recentemente) e nosso plano de saúde é excelente. E também possuo outra casa, a qual posso vender, mas está alugada. Francamente, não quero me meter em dor de cabeça. Tenho poucas ambições. Penso pequeno, quanto a isso. Certamente, se eu tivesse grana caída do céu, investiria em imóveis prontos, para aluguel (uma prima minha comprou um prédio com dez apartamentos) e faria alguns aportes. Mas, para se sacrificar, tô fora. Faço regularmente alguns viagens, costumo comer fora ao menos ¾ vezes por semana e preciso dar conforto à minha filha.

      Já coleciono um time de futebol de amigos que morreram jovens. O risco de investimentos não é perder grana, é perder tempo sem aproveitar a vida como poderia ter sido aproveitada. Um amigo de trabalho morreu milionário e sem filhos, legou tudo à família e os irmãos fizeram a festa...

      Certamente, o futuro no serviço público é sombrio. Mas até lá creio que já estarei com minha filha criada (e ela que arregace as mangas, no futuro, para lutar) e só precisarei do $$ para necessidades triviais e alguns pequenos “luxos” que de luxo não tem nada.

      Não se assombre. Mente pequena, como a minha, realmente não tem jeito!

      Abraços!

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    4. será q não valeria a pena juntar dinheiro e comprar casas prontas?

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    5. Não sei se vc anda por dentro do mercado de imóveis, mas os valores foram para as alturas. E não sem razão. Fiz uma reforma há menos de um mês. Ferro aumentou quase 50% (vergalhão e estribo; metalon, foi quase 100%), cimento acho que 30%, fora areia e brita. Imagine o custo do acabamento? Valer a pena comprar casa pronta, pode ser. Por mais que se diga o contrário, acho imóvel um bom investimento, para quem quer investir. Aliás, até carro virou um bom investimento. Para vc ver como anda o mundo. Um colega comprou uma fiat strada antes da pandemia, usou bastante em atividades de roça e depois a vendeu, há pouco tempo, mais caro do que comprou! Então, valeria a pena comprar casa pronta? Sim. Mas não quero mesmo é juntar dinheiro, Scant...

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    6. Mas... ando me organizando financeiramente para tentar passar dois meses na europa, pois meu cunhado reside em Barcelona e faz várias viagens a trabalho por diversos países, de carro! E nos chamou para um rolê! Se der, irei, sim. Mas com $$$ de folga para isso.

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    7. boa, depois faz um post sobre o que achou sobre a cultura local

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    8. Depois BEM depois... Não tenho grana para isso agora e nem sei se haverá "oropa" até lá...

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