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sábado, 11 de janeiro de 2020

D'O Berço do Herói a Roque Santeiro


“Tô certo ou tô errado?" - Sinhozinho Malta

A vida de noveleiro me deixou no ano de 2004 para nunca mais retornar. Na verdade, a TV aberta ficou quase totalmente no passado, em minha vida, mais ou menos neste mesmo período. As últimas telenovelas vistas de cabo a rabo foram: Da Cor do Pecado (das sete), onde torci pelo sucesso do casal Preta e Paco, e Celebridade (das nove), quando, de certa forma, tomei partido da "vilã" Laura (Cláudia Abreu), pois achei que, realmente, Lineu (Hugo Carvana) merecia morrer e a "mocinha" Maria Clara (Malu Mader) não passava de uma sonsa oportunista.

Aos dezesseis anos de idade, na banca de revistas Terceiro Mundo situada na Avenida Rio Branco de meu sublime torrão, vi exposto o livro O Bem-Amado de Dias Gomes, mencionado desde a capa como "farsa sócio-político-patológica em 9 quadros", em apenas um ato. Conhecia teatro lendo Ariano Suassuna e Skakespeare e o formato não foi novidade para mim. Contudo, Dias Gomes foi paixão à primeira leitura. Logo após, na mesma banca, comprei Sucupira: ame-a ou deixe-a, venturas e desventuras de Zeca Diabo e sua gente nas terra de Odorico, o Bem-Amado. No caso, tratam-se de roteiros escritos para a televisão e me surpreendi seduzido por aquela forma narrativa dinâmica. Depois, trouxe para casa a peça político-ideológica A Invasão e, mais de dez anos à frente, comprei O Berço do Herói.

Todos os livros são da Betrand Brasil, incorporada ao Grupo Editorial Record. Atualmente, em algumas pesquisas, verifico que continuam a publicar trabalhos do autor com novo trabalho gráfico. Gosto mais da primeira leva de capas. Talvez ainda garimpe por aí edições da primeira versão desta coleção para completá-la. Talvez... pois ando lendo mais "formato digital gratuito".

Recordo bem das notícias do falecimento do autor em 1999, ao mandar o taxista acelerar para chegar logo à sua casa após ter jantando numa cantina italiana. Tragicamente, após a colisão, seu corpo foi arremessado pela porta aberta e comprimido entre o veículo e uma estrutura urbana. Para mim, ali, falecia um dos melhores autores de folhetins para TV, ao lado de Aguinaldo Silva, Benedito Ruy Barbosa, Gilberto Braga e Sílvio de Abreu. Diferente de todos os colegas autores mais badalados, Dias Gomes chamava atenção pelo estilo de vida radical chic, comendo caviar e arrotando comunismo, aproveitando seu trabalho para espalhar sua doutrina macabra com bastante bom humor. Ele foi realmente muito bom ao que se propôs. Fui noveleiro até o ano de 2004 e conhecer Dias Gomes, especialmente por Vale A Pena Ver de Novo, me fez colocá-lo no pódio dos melhores. E no pódio dos mais chatos, igualmente. Oportunista, exigiu retornar à frente de Roque Santeiro quando percebeu o sucesso da novela nas mãos de Aguinaldo Silva.

O fantástico em Dias Gomes sempre me pareceu plausível. Criança, morria de medo do Professor Astromar Junqueira que, ao som de Zé Ramalho, transformava-se em lobisomem. Eu era muito pequeno e mantenho essa memória. Utilizo programas televisivos como marcadores temporais para identificar dada fase passada de minha vida. Acompanhei integralmente seu derradeiro trabalho O Fim do Mundo, na verdade uma minissérie rotulada de telenovela para tapar buraco na programação. Em 2013, pudemos apreciar o onírico e o surreal no remake de Saramandaia. Mas Roque Santeiro, para mim, sempre será a melhor novela de todos os tempos, até porque não as vejo mais para tecer comparações. É um trabalho perfeito: enredo inteligente, cáustico e bem humorado, ótimas atuações, caracterizações inesquecíveis como Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, ambientação, produção de arte, figurinos e trilha sonora.

Ao começar a ler Dias Gomes, descobri a origem de Roque Santeiro na peça O Berço do Herói. Nesta, Cabo Jorge é dado como morto em confronto direto com nazistas durante a guerra, tornando-se logo herói nacional, personagem constante em obras militares, nome em destacamento e, inclusive, sua cidade Natal passa-se a chamar... Município de Cabo Jorge. Após dez anos, anistiado de eventual crime militar, ele retorna como mero cagão, assassino de camponês italiano para assumir seu lugar e, assim, fugir do conflito. Descobre, então, que inventaram toda uma história lucrativa sobre si, a viúva que nunca fora sua esposa - Antonieta - e que o Major Chico Manga fora o mentor intelectual de quase todas essas bobagens. A vinda a público de seu retorno e a verdade sobre sua história levará a cidade à falência e o Exército ao ridículo. O que fazer? Dar cabo do Cabo, ora. Esse mote caiu em desgraça junto às Forças Armadas brasileiras, por debochar da instituição de heróis nacionais de coturno. Tanto é assim que a novela teve trinta e seis capítulos gravados na década de '70 e, por decisão do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), nunca foi ao ar. Numa escuta clandestina, arapongas do Governo flagraram Dias Gomes assumindo que Roque Santeiro seria O Berço do Herói com nova roupagem. Ao invés de desertor, Jorge (cujo nome agora seria Roque) se aproveitaria do saque de cangaceiros na cidade de Asa Branca para roubar o ostensório de ouro da igreja, capar a mula e começar nova vida a Europa. Mas ficou o mito que o santeiro local, na verdade, lutou e morreu contra os cangaceiros, protegendo a Igreja.

Em 1985 a trama pode, definitivamente, ser gravada para exibição. No elenco, mantiveram o insuperável Lima Duarte, também famoso, à época, pela interpretação de outro personagem icônico do escritor baiano: Zeca Diabo.

Achei bacana, neste momento, indicar livros do dramaturgo gauche caviar, ao mesmo tempo em que recordo minha fase noveleira, a qual tanta diversão me trouxe, da infância à adolescência.

Fico por aqui. Abraços televisivos e até a próxima.




quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O Americano ou Um Homem Misterioso [ romance de Martin Booth ]


Assisti a Um Homem Misterioso dois anos após seu lançamento. Gostei bastante. Chamou minha atenção o aspecto silencioso da produção, onde apenas o essencial é dito. Depois, topei com o romance que deu origem ao roteiro e pensei: por que não comprá-lo? Nunca havia lido nada de Martin Booth (conquanto o conhecesse pela boa reputação) e pareceu bem vinda a oportunidade. A edição da Record é decente: brochura com orelhas, papel off-white de boa gramatura e fonte generosa. Assim, não cansamos tanto a visão. A tradução é de Marcelo Schild e a capa segue o padrão antigo da editora: emular o pôster da adaptação cinematográfica, com direito até mesmo à ficha técnica na quarta capa. Acho isso brega e de uma falta de criatividade tremenda. Entretanto, compreendo que são meios encontrados pelo mercado para promover a obra nas prateleiras (físicas ou eletrônicas). E, provavelmente, está dando certo.

O cinema apenas adaptou alguns elementos centrais da obra escrita. Gosto disso. Não me atraem tanto produções que tentam levar à tela todos os elementos do meio primevo. Penso que muita coisa é intraduzível de uma mídia para outra, e que a tentativa de quebrar essa barreira quase sempre mostra-se insatisfatória. Já comentei acerca desse fenômeno numa postagem antiga intitulada Terror Elegante: Fome de Viver e Coração Satânico. No filme, o mote é simples: homem misterioso chega a pequeno vilarejo italiano para se esconder de possível perseguição e, ao mesmo tempo, atender ao que seria sua última encomenda: adaptar uma arma e lhe dar abafador de ruídos. Durante esse tempo, o armeiro é visitado pelo “habitante das sombras” que lhe parece ser uma ameça à vida e, ao mesmo tempo, mantém temor constante até mesmo em relação ao seu antigo colega de trabalho.

No romance, a história é mais longa e complexa, obviamente. O armeiro disfarça-se de pintor de borboletas (daí sua alcunha na região: Signore Farfalla; no filme, esse nome nunca é dito e o ator George Clooney se limita à tatuagem de borboleta evidenciada discretamente). Ele pensa em viver naquele vilarejo após concluir seu último trabalho e, talvez, ter como companhia para o restante de sua vida a bela Clara, universitária prostituta com quem se encontra esporadicamente. A amizade entre o protagonista e o padre Benedetto é bem explorada, com bonitos momentos de conversas entre amigos numa agradável varanda com a qual até temos uma certa satisfação a imaginando. O desenrolar da trama mudou essencialmente. O habitante das sombras que estabelece a vigília de Farfalla tem grande importância na conclusão do livro; já a atiradora, não, limitando-se apenas à compradora do produto. A relação com Clara é bem intensa e envolve idas à restaurante, passeio e até mesmo surubinhas com uma amiga da universitária. Como, no livro, o protagonista reside na Itália já há bom tempo, ele possui um pequeno círculo de amigos bem diversificados. Não é tão solitário quanto no cinema.

No cinema, a trama inicia-se com o assassinato de uma possível namorada de “Farfalla” por ele mesmo, como forma de proteção após escapar de uma emboscada. No romance, tal evento é melhor detalhado mais ao final da trama. E como este fato fechou ainda mais o armeiro a relacionamentos estreitos.

O livro é bom. Vale a pena como entretenimento rápido. Suas mais de 360 páginas são lidas rapidamente, embora o autor pudesse ter suprimido várias páginas se purgasse o texto de descrições repetitivas e outras supérfluas. Se você espremer bem o volume, acho que daria uma novela de duzentas páginas num ritmo mais dinâmico. O estado espiritual do Sr.° Farfalla é repetido à exaustão, seus planos, divagações e sonhos. A paisagem urbana e campestre do vilarejo também, assim como a residência de nosso anti-herói. Além disso, percebemos que o autor repassa ao fabricante de armas (artista, como gosta de ser visto) suas introspecções pessoais. E, colegas, como a cabeça de Martin Booth é confusa! Ele nos cansa um pouco com suas críticas à sociedade moderna, despojada e com ânsia de revolução (viciada pelo progressismo sem meditação) e, ao mesmo tempo, volta atrás para atacar instituições tradicionais, especialmente a Igreja. Vai entender. Em um momento, por exemplo, ele nos repassa o mantra conservador: “É melhor mudar o modo como um homem percebe o mundo do que mudar o mundo que ele percebe.” (p. 50). O reacionarismo negativo (sim, há o positivo) de Martin Booth fica ainda mais evidente nas linhas abaixo:
No centro do Corso, fechado para todo tráfego exceto para ônibus e táxis, os quais são poucos nesse horário, homens caminham de braços dados, às vezes de mãos dadas. Esta não é uma cidade de bichas, um antro de veados, uma mina de ouro para o charlatão com um tratamento para a Aids feito de sementes de damasco amassadas com quinino. É a Itália na qual homens ficam de mãos dadas enquanto conversam sobre as esposas, amantes, sucessos nos negócios e os fracassos do governo.
Entre essas oscilações meditativas do autor refletidas em seu anti-herói, onde valeria a pena tentar mudar o mundo, deixar sua marca na história a todo custo (como um bom demente iconoclasta), ainda há momentos onde ele observa que apenas a morte muda algo, especialmente (ou essencialmente) de personalidades influentes. Assim, chega a asseverar num parágrafo de uma frase só: “Somente assassinatos alteram o mundo” (p. 264). E, para reforçar ainda mais a “bipolaridade” (ou melhor: esquizofrenia literária do Martin Booth), o armeiro, após destilar todo o seu ódio e descrença na Igreja, trava amizade íntima e confidente com o pároco local, homem extremamente convicto da fé que professa. E, após disparar contra tudo e todos, Farfalla ainda nos assusta afirmando (p. 305):
Vivemos no final do século XX, evitei cuidadosamente usar o nome do Deus cristão em vão. Tenho respeito pelas religiões dos outros: afinal de contas, trabalhei para várias causas – islamismo, cristianismo, comunismo. Não tenho a intenção de depreciar ou insultar as crenças alheias. Nada pode ser ganho através disso, salvo controvérsias e a satisfação dúbia do insulto.
Um fato curioso encontrado em livre pequisa minha na internet é que, após a divulgação do filme, a Bantam Books publicou o romance com o título cinematográfico The American, destacando em letras menores “Previously published as A Very Private Gentleman / Now a major motion picture”. E a capa do volume foi a mesma escolhida pela Record. Achei isso meio assustador. Não bastasse a influência do cinema na escolha da capa, chegou-se ao ponto de alterar o nome original da obra. E veja mais: neste caso, The American para o romance é um desastre. É que, na obra escrita, não sabemos a nacionalidade do Signore Borboleta. Os nativos acham ser inglês. Entretanto, tudo é obscuro. Grande bola fora do mercado editorial. E, penso, falta de respeito com o autor, falecido em 2004. Acredito que, atualmente, o copyright pertença à família do escritor, que está cagando e andando para seu legado, desde que dê bastante lucro antes que caia em domínio público. Mas prefiro não julgá-los demasiadamente, pois todo mundo gosta de bufunfa graúda na conta bancária.

Bom, é só isso que tenho a comentar acerca do livro e seus paralelos com a adaptação cinematográfica sem entregar muito da trama. Abaixo, deixo os colegas com duas ótimas cenas onde nada é dito com palavras: quando o armeiro fabrica o supressor e, depois, o teste no campo ao lado da belíssima Thekla Reuten.

Abraço allegro ma non troppo!


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Forrest Gump de Winston Groom



"Preciso fazer xixi."
Gump, Forrest

Eric Roth levou para casa o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por Forrest Gump, desbancando Frank Darabont pelo trabalho em Um Sonho de Liberdade. Acho esquisito isso, pois penso que deveria ser Melhor Roteiro Original, considerando sobretudo que seu trabalho magistral não tem quase relação alguma com o livro mediano de Winston Groom. Este, certamente teria caído em total esquecimento se não fosse pelo filme. São raros casos assim, mas existem. Às vezes, a adaptação para o cinema fica melhor que a obra primeva. Podem me criticar e achar o contrário, só creio, por exemplo, que livros como Clube da Luta, A História Sem Fim e Entrevista com O Vampiro (dentre outros) só vendem bem porque tiveram roteiro adaptado superior ao original.

Não falarei tanto sobre o brilhante filme de Robert Zemeckis porque, se você nunca o viu, falta algo em sua vida. Corra atrás urgente! Acerca do livro, destaco de plano ser escrito tentando emular a linguagem coloquial, com supressões inclusive de letras. Nada de novo sob o sol, vez que, aqui mesmo no Brasil, autores modernos tentavam artifício similar há décadas. A trama é narrada em primeira pessoa e não tem nada a ver com o cara num banquinho de praça contando sua vida extraordinária. São memórias de uma vida de alguém classificado como idiota savant. Basicamente, um burro prodígio. E assim é Forrest, incapaz de se sair bem numa prova escrita de Educação Física porém brilhante em cálculo avançado. Aliás, esse seu dom para matemática foi posto de lado no filme. No livro, bom número de páginas é dedicado à sua fase estudantil, onde praticamente vivia isolado e sem amigos. Até mesmo Jenny Curran não foi grande presença em sua infância. Sequer sua mãe o foi em sua vida, sempre se dirigindo a ele qual um reles idiota. E tampouco Gump foi um filho tão bom como o construído no cinema.

Deveras, o Gump de Winston Groom se envolveu em feitos extraordinários: a) jogou bem futebol americano e, aliás, é dotado de grande porte físico; b) teve papel importante na abertura comercial chinesa jogando pigue-pongue; c) foi ao Vietnã e retornou com honras; d) viajou pelo espaço acompanhado de uma cientista e um orangotango que o acompanharia pelo resto de sua vida; e) perdeu-se na África por anos, quando sua espaçonave caiu, convivendo com canibais; f) ganhou muito dinheiro com camarão; g) se mostrou grande músico, integrando até mesmo uma banda; h) foi exímio enxadrista; i) abandonou tudo para acabar sua vida tocando em ruas, a troco de... trocados, sendo sempre acompanhado pelo Tenente Dan e o gigantesco símio.

Forrest Gump é um livro para mero entretenimento, cheio de trechos que não convencem, às vezes mal construído e com único propósito de tentar ser cômico. Não espere sequer uma página dramática. Até mesmo seu reencontro com Jenny e seu filho, ao final, é rápido e por mero acaso, vez que ela está bem casada e o marido mostrou-se bom padrasto para o garoto. Não há muita relação com o Gump de Roth/Zemeckis, a não ser poucos aspectos. Não compreendo sequer por que a capa do livro traz o icônico banco de praça do cinema, já que a narração se dá à toa, a esmo, sobre toda uma vida. O próprio narrador-protagonista nos diz, ao final, que de repente envelheceu, chegando aos 60 anos de idade. E é só. Ele não narra sua vida a ninguém, mas a si mesmo.

O filme de 1994 ficará para sempre na História. Às vezes eu preferiria nem ter lido o romance, pois parece sujar as vivas imagens que possuo da trama desde que, adolescente, loquei o VHS assim que lançado e, anos à frente, o gravei quando exibido pela primeira vez na Tela-Quente da Globo. Mas foi uma leitura rápida e não tomou bastante tempo. E serviu para reforçar minha visão sobre o Cinema enquanto nobre forma de arte, jamais abaixo da Literatura, como teimam alguns.

A edição comemorativa de 30 anos de Aleph, por sua vez, é linda. São 392 páginas de papel pólen bold 90 g/m² em capa dura com relevo e sobrecapa dupla face, com generosas fontes coloridas que respeitam nossa visão cansada. O projeto gráfico é impecável e tenta nos remeter à alma americana, com suas cores, listras, estrelas e um trabalho tipográfico entre capítulos similar às chamadas de época (parabéns ao Pedro Henrique Barradas). As ilustrações de Rafael Coutinho são razoáveis vez que o próprio artista é apenas razoável. A tradutora Aline Storto Pereira deve ter suado bastante para encontrar, em nosso idioma, o tom coloquial e simplório buscado pelo autor.

Em resumo: se algum dia estiver com bastante tempo livre e certa curiosidade, leia este romance. O filme, veja e reveja até as imagens colarem em seus miolos. Ah, e a caixa de bombons também está lá, no primeiro parágrafo, apenas para situar o narrador como alguém de ideias desconexas: "Deixa eu te dizer uma coisa: ser idiota não é nenhuma caixa de chocolate.".

Abraços achocolatados e até a próxima.







sábado, 28 de setembro de 2019

O Homem que Caiu na Terra, por Walter Tevis e Nicolas Roeg


Bebeu água? Não! 
Tá com sede? Tô! 
Olha, olha, olha, olha a água mineral

Walter Tevis publicou seis romances e, destes, três foram adaptados com sucesso para o cinema. A Cor do Dinheiro (1986), aliás, deu ao grande Paul Newman o Oscar de Melhor Ator e ajudou Tom Cruise a impulsionar sua carreira. Mas penso que seu trabalho mais cultuado, tanto na literatura quanto na ida à telona, é mesmo O Homem que Caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth). O filme (1976) tornou-se cultuado como um dos essenciais à ficção científica e por ser o trabalho de estréia de David Bowie num grande papel. E penso serem justos todos os elogios à produção, pois não deixa a desejar em momento algum, nem mesmo nas lacunas propositadamente deixadas pelo diretor Nicolas Roeg, em relação ao romance escrito.

O filme foi o mais fiel possível à obra escrita. O mote é simples e, hoje, pareceria batido. Um alienígena humanoide chega à terra e se torna multimilionário arrendando patentes de alta tecnologia. Seu objetivo é dispor de muito dinheiro para, em até cinco anos, estar com uma espaçonave construída e assim, retornar ao seu planeta. Logo, sua natureza alienígena, mesmo a contragosto, vai-se perdendo e ele sente que está se humanizando. Para piorar, torna-se alcoólatra e sente que está desenvolvendo problemas emocionais similares aos humanos, como paranoia e depressão. Para piorar, é descoberto pelo Governo americano e posto sob vigilância constante, sendo condenado a viver na Terra até o final de seus dias enquanto conta, igualmente, os últimos dias de seus conterrâneos, amigos e familiares que permaneceram no planeta primevo.

A escolha de Bowie para dar vida ao humanoide Thomas Jerome Newton não poderia ser melhor. Quando lemos o romance de Tevis (1963) o cantor se encaixa perfeitamente no que poderia vir à nossa mente. E essa relação de David Bowie com o ET possui prévia e pós com o filme. The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972, ou seja, de quatro anos antes do filme) - um dos melhores disco que conheço, ao lado de Pink Floyd's The Wall -, por exemplo, conta a história do alien que, na Terra, torna-se astro do rock, multimilionário, e, depois, conhece a bancarrota espiritual. Depois do filme, Bowie deu continuidade ao personagem de Thomas Newton em dois álbuns, inclusive utilizando imagens do cinema nas capas. Não seriam bem o Thomas de Tevis/Roeg, mas extensões dele. 

No início da trama, vemos Tommy (como sua "amiga" Betty Jo o chama) vendendo anéis de ouro em pequenos comércios para conseguir dinheiro. Após um tempo, procura o advogado Oliver Farnsworth com uma pasta cheia de grandes projetos óticos, químicos e eletrônicos para que lhe dê suporte jurídico. Em pouco tempo, seu nome torna-se conhecido mundialmente e ele passa a contar com a amizade de dois empregados: a governanta Jenny e o Engenheiro Nathan Bryce. Este sempre desconfiara da natureza alienígena do patrão e, no romance, acaba obtendo a prova definitiva devido a um raio X obtido clandestinamente. Algo que chama atenção no filme é como o alien gosta de água. Por viver numa terra seca, próxima do colapso, ele bebe água como um rito cerimonial. Ninguém ama água como aquele cara. Creio que ele tomaria até água da privada só para não vê-la descer para o esgoto.

No filme não temos muitas informações de seu planeta natal. Apenas vemos, às vezes, cenas rápidas do que seria sua família, esposa e filhos, minguando em terras devastadas pela seca, onde necessitariam de roupas especiais para reaproveitar fluidos corporais. No romance, Tommy nos fala a respeito deste planeta frio. Em eras atrás, costumavam explorar outros lugares. Num dado momento, chega a pensar que nossa crença em deuses celestes se deve, lá nos primórdios, a alguns antheanos quando estiveram por aqui em contato com nossos antepassados primitivos. Tais viagens se tornaram raras com o tempo diante da escassez de combustíveis. Seu planeta está moribundo, destituído de recursos naturais. Chega a nos dizer que passaram por várias guerras para que chegassem a isso. Antes, três espécies distintas que habitavam Anthea conviviam até em certa harmonia. Com o tempo, restara apenas uma delas e com menos de trezentos exemplares. E, aí, nos dá outra revelação ausente no filme: a espaçonave - ou balsa - construída por ele tem o intuito de levar combustível aos seus companheiros para que, na Terra, espalhem-se, ocupem postos de destaque na política, negócios e ciências e, assim, de forma discreta, orientem o mundo no caminho que eles acham melhor.

Também é interessante destacar que, no romance, o mundo encontra-se à beira de uma nova Grande Guerra. O próprio Thomas a estima em algo entre dez ou trinta anos, com grandes chances de devastação total. Crê ele que, junto com o remanescente antheano, poderia impedir isso. Até mesmo nosso país é citado neste imbróglio internacional: "Foi até à cozinha e preparou duas xícaras, usando as pílulas de café que era praticamente o máximo que você conseguia comprar naqueles tempos, já que o país tinha cortado relações com o Brasil.". Seria, enfim, uma década de '80 distópica, numa Guerra Fria mais morna do que realmente o foi.

Também se destacam as referências à literatura erudita, as quais, creio, se devem à formação de Walter Tevis e seu posto de professor de literatura na Universidade de Ohio durante mais de década. O trecho abaixo é interessante de se destacar para exemplificar como Thomas recorre à nossa cultura para expressar seus sentimentos, vez que fora treinado por vinte anos para poder vir à Terra e assimilou de tudo, desde programas banais domingueiros até alta cultura.
O carro os esperava com um chofer uniformizado. Quando estavam confortáveis dentro dele, Bryce perguntou: "Está gostando de Chicago?". Newton olhou para ele por um momento e respondeu: "Tinha me esquecido de toda essa gente". Com um sorriso fino, recitou Dante: "Não sabia que a morte tinha desistido de tantos". Bryce pensou: Se você é Dante, entre os condenados - e provavelmente o é -, então sou Virgílio.
Em resumo: o filme de Nicolas Roeg é tão bom quanto o livro de Walter Tevis, e tenta segui-lo à risca, dentro do possível. Recomendo tempo investido nessas obras. Além disso, a edição brasileira da Darkside é caprichada: tradução de Taissa Reis, capa dura, corte laranja, papel amarelado similar ao pólen, com letras generosas, bom espaçamento e margens não econômicas. O livro fora lançado por aqui, antes, em 1988, pela Editorial Caminho. Lembro que, antes da edição da Darkside, esta brochura era vendida a preços elevados em sebos. Hoje, percebo que alguns não conseguiram vendê-la e, agora, estão com encalhe. Depois as pessoas se perguntam porque sebos estão morrendo.

Enfim, é isso. Poderia escrever mais sobre este pequeno livro (224 páginas) e o excelente filme. Mas ficaria cansativo. Fico por aqui logo após recomendar a leitura da postagem Terror Elegante: Fome De Viver e Coração Satânico, onde também cito dois ótimos romances adaptados para igualmente ótimos filmes; e um deles com David Bowie. E, mais abaixo, aproveito para postar imagens de meu exemplar e também do David Bowie Está Aqui da finada Cosac & Naify. Embora se destine mais ao público fashionista (não é o meu caso), tenho mais por amor ao artista e pelo belo trabalho da editora.

Abraços extraterrenos e até a próxima.








sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Despedida de Avalon [ trechos de um romance inacabado ]

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay

 I
    - NO CU, NÃO!

   Berrou Maria Valentina, de quatro, olhando para trás e encarando Enzo Gabriel. Como ela era empoderada, como costumava divulgar aos quatro cantos mesmo sem ser consultada, então prevalecia o "meu corpo, minhas regras". Ele ainda tentou: "Vou por só a cabecinha".

     - Garoto, como diz mamãe, rola não tem ombro. Depois da cabeça o restante entra junto.

     Até havia vontade em experimentar. Ela sempre se sentiu inferiorizada por não tomar atrás. Afinal, se homens davam, por que não ela? Mas as colegas que já deram eram uníssonas: "Dói pra caralho". Não importava se até Karl Marx já havia sido cadela de alguém (com aquela barba pentelhuda era difícil imaginar isso; só que não impossível). Nem se toda a Escola de Frankfurt costumava levar na bunda. Por trás, necas! Mas Enzo Gabriel foi mais esperto e alfinetou: “Até Enzo Emanoel da rua de baixo dá. Você é muito molenga”. Para ela, foi o estopim:

       - Mete, porra!

      E o colega de infância atendeu à ordem, para desgosto de Maria Valentina. Além de bem dotado, ele estava longe da ideia de ejaculação precoce. Não era bem essa a maneira que ela imaginava para quando perdesse as pregas. Isso deveria ser feito com alguém especial, talvez um noiado dos bairros menos favorecidos... E não ali, no quartinho da área de serviço, enquanto estava meio grogue em razão de duas Heineken e um beque. E, para quebrar de vez com o encanto da perda de sua segunda virgindade, sua amiga de faculdade Valentina Sofia observando tudo, filmando com o iPhone, enquanto tragava todo um maço de Black ensebado que empesteava o cubículo. Mas nossa garota gostava de desafios. E aquele seria apenas mais um em sua vida.

       Do lado de fora do quartinho, era festa no apê.


II

    O som tocava alto, o suficiente para seu Mathias – porteiro – subir duas vezes as escadas até o terceiro andar, bater forte na porta e gritar: “Abaixa esta merda, seus arrombados”, ao que todos gargalhavam, enquanto ouviam um pot-pourri indecifrável, vindo ora das caixas acústicas ora dos celulares. Havia indícios de bom gosto com Black Sabbath e Os Novos Baianos numa ponta; e sertanejo e funk noutra. O funk mais lixo, mesmo, daquele produzido pelos pseudo-sofridos que desfilam em comunidades dirigindo Pajero e Camaro, sustentando cinco quilogramas de ouro no pescoço e mais dez de pó nos pelinhos das narinas, enquanto cantam as desigualdades sociais que levam os "manos" ao crime.

    As meninas empoderadas detestavam funk, mas valorizam as fanqueiras que faziam o que bem quisessem com seus corpos e suas almas. Não sabiam explicar bem se aquela exposição de bundas e xotas em shorts minúsculos tinha algo a ver com Simone de Beauvoir. Ah, mas à porra com tudo aquilo. O importante é que cada corpo é um templo cheio de santinhas; e, no caso, elas eram iconoclastas.

    Foi esse inferno melódico que impediu as pessoas amontoadas na sala e cozinha de ouvirem os urros de dor de Maria Valentina, enquanto levou em torno de vinte minutos para arrebentar cada uma das preguinhas bem tratadas com talco da mamãe. Valentina Sofia estava ali apenas para gravar, pois nada que tivesse um “macho” envolvido lhe interessava realmente. E, findo o show, enviou a gravação para o grupo “Cabaret Comunicação Social” do Whatsapp. 

       Tudo se espalhou como vírus em menos de um dia.

domingo, 22 de setembro de 2019

O Aprendiz, Conta Comigo e Um Sonho de Liberdade [ do livro às telas ]

Capa da edição nacional pela Suma de Letras. Li a versão eletrônica.

Há muito tempo, meu irmão comentou, ao ver anúncio de filme na TV: "Esse Stephen King só escreve bobagem de monstros etc.". Foi mais ou menos isso que ele disse. Como ele nunca leu nada de King, não poderia fazer essa avaliação por meras adaptações cinematográficas. À época, eu também não lia nada dele, mas sabia que não há como julgar um escritor por adaptações roliudianas. Por exemplo: It e Sob a redoma são romances estupendos; entretanto, suas adaptações para cinema e televisão, respectivamente, são realizações dispensáveis - no mínimo. Na hora, ainda o lembrei da existência de filmes que o agradaram baseados em livros de Steve: Um Sonho de Liberdade (1994) e Conta Comigo (1986) - os dois que vieram rapidamente à mente). No momento me fugiu outro filme que gosto bastante e sem nenhum toque de sobrenatural: O Aprendiz (1998).

As três produções acima mencionadas surgiram da adaptação de contos da antologia Quatro Estações: Primavera Eterna - Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank, Outono da Inocência – O Corpo e Verão da Corrupção - O Aluno Inteligente. Já Inverno no Clube – O Método Respiratório é um conto que comentarei noutra postagem. Aqui, pretendi apenas abordar narrativas adaptadas ao cinema. Farei apenas breves apontamentos, destacando pontos que me chamaram a atenção. Não há como traçar paralelos entre obras escrita e cinematográfica sem soltar revelações do enredo. Assim, se você sequer assistiu aos filmes e tem spoilerfobia, não prossiga nesta leitura. Vamos lá?



Primavera Eterna - Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank. O banqueiro Andy Dufresne é condenado à prisão perpétua pelo assassinato de sua esposa e de seu amante, famoso jogador de tênis. Na temida prisão de Shawshank, no Maine, ele torna-se amigo de "Red", homicida irlandês conhecido por facilitar o acesso a bens de consumo de fora do xilindró. É o cara do mercado negro. Aos poucos, Dufresne vira peça importante junto ao último Diretor que comandou o presídio durante sua estada: Samuel Norton, ao auxiliá-lo no sistema de lavagem de dinheiro obtido por meio de propinas em obras e serviços prestados à população por Shawshank. A fuga espetacular é apenas um detalhe dentro da narrativa agradável de King.

Na mitologia do Oscar, afirmam que Um Sonho de Liberdade foi a produção mais injustiçada da história, pois mereceria boa parte dos prêmios das sete indicações a que concorreu. Entretanto, notem bem: também era o ano de Forrest Gump, Quatro Casamentos e Um Funeral e Pulp Fiction. Páreo duríssimo! No IMDb, o filme de Frank Darabont, regularmente e há anos a fio, está na posição de melhor obra de todos os tempos, ao lado de O Poderoso Chefão.

Penso que Redenção em Shawshank é um manual de como tentar ser feliz. Veja bem: você tem a liberdade de ir e vir ou de não ir a lugar algum se assim quiser. Você tem a opção de vadiar ou produzir. Nunca foi trancafiado por duas décadas numa prisão imunda com trabalhos forçados mesmo sendo inocente - e isso após todo mundo saber que você era corno. Além disso, não tem que ficar se preocupando todos os dias com quem vai enrabá-lo à força. E ainda reclama da vida? Andy Dufresne suportou tudo isso por anos e mesmo assim manteve a cabeça erguida: "Lembre-se de que a esperança é uma coisa boa, Red, talvez a melhor coisa, e as coisas boas nunca morrem.", escreve ao amigo.

Diferentemente do cinema, no romance, Red é irlandês; daí, sua alcunha. Além disso, a penitenciária passa pelas mãos de vários diretores. O hipócrita Norton é apenas um. No conto, o protagonista não foge com a grana dos investimentos escusos de Norton. Durante anos, ele teve ajuda de um amigo fora das grades que cuidou de seus próprios investimentos e fez a grana de Andy render. O Diretor, aliás, tem até um final bonzinho, apenas sendo afastado da gestão após uns quatro meses da fuga. Não conseguimos sentir muita simpatia por Red quando descobrimos que ele matou a esposa por grana do seguro, causando também a morte de uma vizinha e de seu bebê no acidente planejado de carro. E, por fim, não sabemos se Red encontrará seu amigo. A história conclui com ele furando a condicional para ir ao México, com este belíssimo derradeiro parágrafo: "Espero que o Pacífico seja tão azul quanto em meus sonhos".


Verão da Corrupção - O Aluno Inteligente não se passa no Maine, mas no sul do Estado da Califórnia, na fictícia Santo Donato. Também é fictício o campo de concentração nazista de Patin. O mote é simples: estudante americano exemplar, de classe média alta, descobre que morador da região é criminoso de guerra foragido, sob nome falso. Sádico, passa a chantagear o velho nazista, prometendo não lhe revelar a identidade em troca de histórias acerca do Holocausto. Para amarrar a trama, o ex oficial nazista Kurt Dussander diz que sua renda atual vem de dividendos de ações compradas pela consultoria de Andy Dufresne. O fato deste ter assassinado a esposa também é mencionado. Durante a narrativa deste conto, Dufresne ainda está encarcerado na "Primavera Eterna".

Como é natural, pegaram leve na adaptação. Geralmente, os estúdios optam por isso para atrair mais público, em razão da ausência de restrição por faixa etária, ou de sua redução. Hoje, com filmes baixados sem controle pela internet, é uma tremenda babaquice fazer isso. Mesmo assim, em alguns casos, insistem neste vício comercial onde o tiro sai pela culatra.

Acho que todos os eventos narrados por Dussander acerca do holocausto são dignos de atenção, prendendo o leitor. Os momentos que mais me despertaram interesse foram quanto à burocracia do genocídio. Essencialmente, todo oficial do Reich era um burocrata. Assim, Dussander se orgulha de sua economia com uniformes de prisioneiros, feitos em papel. Em sua gestão, cada vestimenta foi reaproveitada por até quarenta confinados. Já as mortes precisavam ser rápidas e a baixo custo. À época, o Führer considerou cartucho recurso nacional essencialíssimo. Isso é natural em nações à beira de conflitos ou em guerra declarada. Às vezes, por exemplo, o gás Zyklon-B era substituído por outro experimental. O resultado, várias vezes, pedia a intervenção armada, com desperdício de munição.
Meus homens chamavam o Pégaso de gás de falsete. Finalmente caíam e ficavam lá no chão, deitados na própria imundície, ficavam lá, sim, deitados no concreto, gritando em falsete com narizes sangrando. (…) Finalmente, mandava cinco homens com rifles porem fim à agonia.
Os métodos utilizados por judeus endinheirados para guardar bens e bobagens como tabaco (algo raro à época onde só se cultivava mais o básico à sobrevivência) também são interessantes: "Uma mulher (…) tinha um diamante (…). Engoliu-o antes de entrar em Patin. Quando saía nas fezes ela o engolia de novo. Continuou fazendo isso até que o diamante começou a cortá-la e ela começou a ter hemorragias.".

A natureza desumana (ou excessivamente humana?) de Todd começa a despontar quando seus primeiros sonhos eróticos envolvem estupros e experimentos sexuais diversos em campos de concentração, assim como no seu primeiro namoro com uma garota judia de uma família amiga; para Todd, uma vadia que merece nada mais do que a degradação em quaisquer formas possíveis. Em pouco tempo, Todd está transformando um pássaro ferido em pasta sob as rodas de sua bicicleta, indo e vindo sobre o pequeno cadáver. Mais à frente, começa a assassinar mendigos com facas de caça e a marteladas. Seu grande sonho, contudo, é, bem acomodado com vista à via expressa, munido com rifle ganho de seu pai, atirar no máximo de motoristas que vê na rodagem.

Denker/Dussander também começa a se divertir matando mendigos em sua cozinha. Tudo começou com pequenos animais, como cães e gatos. Inevitavelmente, chegou aos bêbados das ruas que fariam qualquer coisa por cinco ou dez dólares, inclusive transar com um “próspero veado velho com queda pela mendicância”. Pensando que vão à casa do nazista para comer e beber em trocar de meter no velhote, sempre acabavam com a faca de cozinha estocada entre a nuca e o pescoço. O porão transforma-se em cemitério e, de certa forma, é essa sanha por matança que complica a vida do nazista e seu pupilo. Dussander mata-se com overdose medicamentosa antes de levado a julgamento e execução em Tel Aviv. No cinema, foi sufocando-se após engolir instrumento ambulatorial. Todd enlouquece definitivamente, matando seu ex-conselheiro escolar e saindo para o que der e vier, com seu rifle em punhos, em direção à via expressa mencionada, após ver-se sem saída diante da aproximação das investigações policiais.

No livro também encontramos a célebre cena da marcha, disponibilizada no vídeo mais acima.


Em Outono da Inocência – O Corpo, quatro amigos viajam sozinhos pela mata para ver o cadáver de um garoto, atropelado pelo trem. Deste mote simples, temos a bela história de amizade imortalizada no Brasil pela Sessão da Tarde na Globo. A adaptação para o cinema fez bastante sucesso aqui, tornando-se clássico da televisão. Nós, crianças do início da década de '80, crescemos encharcando os miolos com o refugo pop norte americano quando já éramos crianças bem adiantadas na década seguinte. E, quer saber? Foi bom.

Enquanto O Corpo se passa na geografia fictícia do Maine, Conta Comigo manteve o nome da cidade Castle Rock, mas no Estado onde ela realmente existe: Oregon. Além disso, Chris Chambers ainda estava na faculdade quando foi morto com uma facada no pescoço. Gordon Lachance nos diz que seus dois outros amigos também morreram tragicamente. Teddy Duchamp, quando capotou o carro e Vern Tessio em meio a um incêndio, onde só foi reconhecido pela arcada dentária. O gordinho chamada de Bola de Sebo presente na história dentro da história (artifício bastante utilizado pelo autor), chama-se David "Lard-Ass" Hogan - num português claro: Rabo Grande. Além da história de Rabo Grande, também há outra meio sem graça, um drama familiar escrito pelo então jovem escritor Gordie quando estudava redação criativa.

Na prosa, a vida profissional de Gordie tem maior destaque. Fica claro que ele se tornou autor de best sellers odiado pela crítica erudita. Logo, alguém bem similar à figura do próprio King. Num determinado momento, o maduro Gordon nos diz que isso não importa, já que ele quer apenas escrever boas histórias para entreter. Isso me recordou Bill Denbrough em It: A Coisa, onde o personagem também discorre algumas vezes acerca da escrita e seu alcance, discutindo se a literatura não poderia se destinar, apenas, ao mero entretenimento.

Há dois elementos sutis de ligação entre O Corpo e Redenção em Shawshank: citações a Bruce Springsteen e, outrossim, o fato do assassino de Chambers ser ex-presidiário de Shawshank, solto há poucos dias antes do acontecido.

Eu poderia escrever mais sobre esses três contos e suas versões para os cinemas. Mas acho que está bom parar por aqui. Ficam as sugestões aos colegas: leiam o livro, assistam aos filmes. Há uns quatro anos falam que O Método Respiratório também será levado às telas. Não estou por dentro de como andou isso.

Por enquanto é isso. Abraços assombrados e até a próxima.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Onde os velhos não têm vez [ Romance de Cormarc McCarthy ]

Imagem de meu exemplar com selo Anton Chigurh de aprovação.

No meio do deserto texano uma negociação milionária de heroína marrom dá errado. Todos morrem. Um veterano do Vietnã - Llewelyn Moss - está caçando na região, depara-se com a cena e leva para casa mais de dois milhões de dólares. Em seu encalço, é enviado Anton Chigurh. Sua função é recuperar a grana. O cartel, com medo da atuação solitária e talvez inconsequente de Chigurh (Sugar?) contrata Carson Wells para entrar na busca. E, seguindo os rastros de todos, está o Xerife Bell (Ed Tom para os íntimos), homem deslocado de seu tempo e assustado com a natureza dos crimes que vêm despontando à sua volta e até mesmo no aparentemente pacato condado onde reside com a esposa Loretta. E esse "deslocamento" tem a ver com título original da obra (No Country for Old Men), obviamente. Mesmo assim, gostei da tradução brasileira para a adaptação cinematográfica: Onde Os Fracos Não Têm Vez. Achei mais abrangente para a história de uma sociedade acuada e bestificada, cada vez mais consumida pela violência gratuita ou por motivos torpes. Quando o livro saiu pelo selo Alfaguara, o filme dos irmãos Coen ainda estava em produção. Acredito que, se já estivesse ao menos em fase de exibição, a editora Objetiva teria optado pelo título cinematográfico brasileiro.

O que mais chama nossa atenção ao primeiro contato com o livro é sua estrutura formal confusa. Parece roteiro mal escrito de cinema. Dentro de um parágrafo narrativo, falas surgem abruptamente sem travessão ou aspas. Numa sequência de diálogos, citações são organizadas sem auxílio de pontuação regular. Se o leitor não ficar atento, acaba se perdendo em meio à bagunça. Contudo, não chega a ser uma dificuldade hercúlea como já falaram por aí. Basta, somente, compenetração com a leitura, nada mais. Acredito que deve ter dado trabalho à escritora Adriana Lisboa na tradução. A prosa é curta (em torno de 250 páginas, com fonte e espaçamento generosos) e dá para ler tranquilamente em duas noites. O papel amarelado similar ao pólen também auxilia bastante a ler tudo rapidamente sem cansar a visão.

Acho que um grande mérito (são tantos) do romance é a "construção vazia" do pistoleiro Anton Chigurh, muito bem interpretado na película por Javier Bardem (Friendo?). Levando consigo um tanque de pistola pneumática para matar gado e uma carabina de alto calibre com silenciador, deixa rastros de sangue sem dó por onde passa. E, quando não tem arma à mão, vai com essas limpas mesmo, como na primeira execução da trama: algemado, por estrangulamento. Ele não age por grana. Seu interesse é meramente profissional. Sua profissão é sua filosofia de vida. Isso fica mais evidente no romance, onde conhecemos até mesmo o destino dado ao dinheiro recuperado e à outra passagem também suprimida no filme: como ele foi preso inicialmente, o que o levou a ser detido por uma simples patrulha local para fugir logo em seguida. O personagem contraponto é o Xerife Bell. Assim como Chigurh, ele também é exímio profissional, e tenta ser o melhor no que faz: aplicar a lei, atuando de forma ética em respeito a cada centavo pago pelo contribuinte de seu condado. Seu código moral é rígido: honrar a memória de seu falecido pai, fazer sempre o correto, manter elevados valores conservadores atualmente tão em baixa (adiante falarei melhor disso). Não foi mostrado no cinema, mas o personagem possui um fantasma do passado o sufocando desde que retornou da Segunda Grande Guerra. E esse detalhe só engrandece ainda mais o personagem.

Tanto no livro quanto na adaptação, vemos o Texas como o principal personagem de toda a trama. Isso me lembra um pouco o nordeste brasileiro. Num determinado momento, o tio Ellis comenta como aquela terra é cruel e, mesmo assim, todos a amam. Quanta ingratidão! A religiosidade texana está presente no xerife Bell, em seu temor divino como fundamento de disciplina, na crença de que toda a violência crescente possui contornos apocalípticos.

Sem dúvidas, é uma grande obra. Vale a pena tê-la na estante para reler. Até onde sei, não teve reimpressão desde 2006. Vi que em várias livrarias já está rareando. Então, se você pensar em comprá-lo, o faço logo. A não ser, claro, que possa ler a versão original em inglês ou goste da plataforma eletrônica. Meridiano de Sangue (romance considerado por muitos sua opus magnum) esgotou. Entretanto, informaram que teria reedição para logo. Talvez façam o mesmo com Onde os velhos não têm vez. Mas... uma curiosidade: de McCarthy possuo apenas este livro na estante. Li A Estrada (adaptado para o cinema com Viggo Mortensen no papel principal) e Meridiano de Sangue no formato eletrônico. Esta postagem é republicação de alguns anos e, até hoje, não vi tais relançamentos. Então já sabem, né? Alguns livreiros estão pondo a brochura de Meridiano de Sangue à venda por até trezentos reais! Depois ficam com a edição encalhada e se queixam da queda de vendas nos sebos.



Como falei acima, Ed Tom possui valores ético rígidos. Isso fica evidente a cada linha. Ele não é um fanfarrão. É honesto mesmo. Algumas pessoas acreditam que Cormarc McCarthy denuncia o genocídio indígena do oeste americano em Meridiano de Sangue. Ele não denuncia nada. Ele apenas narra fatos e tem conhecimento de que não haveria expansão ao pacífico mediante diálogo com nativos. Estes, aliás, tão sanguinários quanto seus opositores. A América pertencia às nações indígenas assim como pertencia aos filhos e netos americanos do que chegaram ali para colonizar. É só História de um tempo de expansão e mudanças. Não há marco sem sangue. E, no princípio, Caim matou Abel - a um custo alto. Para quem acredita que o maior escritor vivo americano quer "denunciar", "problematizar" ou, pior, mudar o mundo a todo custo (ao invés de compreendê-lo e fazer sua parte), transcrevo o trecho abaixo, onde o Xerife Bell responde a uma progressista o que o futuro lhe reserva. Cormarc McCarthy é, essencialmente, um conservador descrente no porvir.
Há um ano ou dois eu e Loretta fomos a uma conferência em Corpus Christi e eu me sentei ao lado dessa mulher que era esposa de alguém mais ou menos importante. E ela ficou falando que a ala da direita isso e a ala da direita aquilo. Não tenho nem mesmo certeza sobre o que ela queria dizer. As pessoas que conheço são na maioria gente comum. Gente simples. Eu disse isso a ela e ela me olhou de um jeito estranho. Achou que eu estava dizendo uma coisa ruim sobre as pessoas, mas é claro que isso é um grande elogio na minha parte do mundo. Ela continuou e continuou. Por fim ela me disse o seguinte: não gosto do rumo que este país está tomando. Quero que a minha neta possa fazer um aborto. E eu disse bem minha senhora não acho que precise se preocupar com o rumo deste país. Pelo que eu vejo não tenho muitas dúvidas de que ela não só vai poder fazer um aborto como vai poder fazer com que sacrifiquem a senhora. O que mais ou menos encerrou a conversa.
Os monólogos a seguir também são interessantes.
Loretta me disse que escutou no rádio sobre o percentual de crianças neste país sendo criadas pelos avós. Esqueci qual era. Bastante alto, achei. Os pais não queriam criar. Conversamos sobre isso. O que nós pensamos foi que quando a próxima geração vier e eles também não quiserem criar seus filhos quem vai criar? Seus próprios pais vão ser os únicos avós disponíveis e esses pais não quiseram criar nem os próprios filhos.
(...)
Tinha um questionário perguntando quais eram os problemas em dar aulas nas escolas. (...) Os maiores problemas eram coisas como conversar em sala de aula e correr nos corredores. Mascar chicletes. (...) Quarenta anos depois. Bem, eis que chegam as respostas. Estupro, incêndio criminoso, assassinato. Drogas. Suicídio. Então eu penso sobre isso. Porque boa parte das vezes em que eu digo qualquer coisa sobre como o mundo está indo para o inferno as pessoas meio que sorriem e dizem que estou ficando velho. Que esse é um dos sintomas. Mas meus sentimentos a esse respeito são que alguém que não saiba a diferença entre estuprar e assassinar pessoas e mascar chicletes tem um problema maior que o meu.
Bem... pessoas de movimentos sociais psicopáticos não gostam muito quando encontram trechos como os acima na obra de um grande autor contemporâneo, ainda vivo. Incomoda saber o óbvio, para onde toda a atuação de grupos cada vez maiores de pessoas sem o menor resquício de espiritualidade (logo, de humanidade) está nos levando. E, vejamos: a trama se passa no início da década de '80, com primeira publicação em 2005. Diferentemente do escritor, não me considero um completo conservador em amplo aspecto (social, político etc.). Mas, como ele, sou descrente na maioria das vezes. Acho que, por mero medo e preguiça, não podemos mais recuperar o que perdemos. Acabou.

Em todo o volume, encontrei apenas um erro. Não de tradução (até porque nem tenho parâmetros para isso), mas de digitação e, logo, revisão. Está no primeiro parágrafo da página n.º 233, onde se repete a passagem "Xerife Bell, ele disse" uma vez.

No cinema, chama atenção como a beleza árida presente nos romances de Cormarc McCarthy foi transportada, o que nos surpreende logo na cena inicial (vídeo abaixo), em brilhante trabalho do diretor de fotografia Roger Deakins, vencedor do Oscar por Blade Runner 2049.

Basicamente, é isso.

Abraços e até a próxima, friendos.

domingo, 8 de setembro de 2019

O Grande Livro Disney


O Grande Livro foi editado pela Abril Cultural, em 1977, resultado da complicação de vários fascículos que haviam sido distribuídos em banca há pouco tempo. Cada fascículos tinha como tema um personagem do universo Disney. E no livrão (dimensões de 26 x 35 cm) continuou assim. São abordados vinte e quatro personagens, dentre famosos e mais “obscuros”, bem como astros e estrelas dos longa-metragens do Estúdio - Cinderela, Peter Pan etc. Após a breve história de cada personagem, incluindo sua origem criativa, temos uma história em quadrinhos sua. Depois, aprendemos como desenhá-lo. Mais à frente, nos deparamos com alguns passatempos temáticos e uma matéria acerca do principal interesse desse mesmo personagem. Assim, por exemplo, no “capítulo” destinado aos sobrinhos do Donald, ganhamos uma matéria bacana sobre escotismo. Em Mickey, aprendemos mais sobre a atividade dos detetives. O Tio Patinhas nos reserva, por exemplo, a história do dinheiro.

De início, somos apresentados brevemente ao mundo Disney e ao seu criador. Em instantes, nos deparamos com uma página quádrupla do mapa de Patópolis. Depois, ingressamos no mundo das criaturas de Wall Disney. O índice da obra fica ao final, em quatro páginas.

A edição é caprichada, com 408 páginas em capa dura e miolo com papel de boa gramatura. Em razão de sua robustez, é difícil encontrar, à venda, alguma edição com a lombada íntegra. Até hoje, dentre as coleções que conheço, só vi esta minha com capa e lombada íntegras. Certamente, outras devem existir, mas devem ser raríssimas. A edição foi classificada como especial e sua diretoria ficou a cargo de Ruth Rocha. E isso é importante: esse enorme livro é produção do estúdio nacional da Disney. Toda a sua concepção e elaboração é de brasileiros, salvos algumas histórias importantes, nas seções de quadrinhos.

A venda ocorreu por marketing direto. Originalmente, quando do lançamento em fascículos, o nome do conjunto era O Grande Almanaque Disney, com o slogan: “Um livrão pra montar aos pouquinhos”. Atualmente, é impossível encontrar alguma edição em bom estado por menos de R$ 500,00 (quinhentos reais). O preço máximo que já vi foi de R$ 600,00 (seiscentos reais), por uma edição em bom estado (não há nenhuma em excelente estado, diante das marcas de oxidação em razão do tempo). É caro dependendo de seu interesse, certamente. Mesmo que caro, teremos em mãos uma magnífica obra do mundo Disney, que tanto nos encantou. E mais: as edições à venda estão rareando.