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sábado, 7 de setembro de 2019

Ed Mort & Outras Histórias


Sou fã das edições lançadas pela finada editora Círculo do Livro, surgida no mercado no início da década de setenta, pondo à venda volumes com ótimo acabamento (papel grosso, em encadernação capa dura colorida) e a preços acessíveis. As vendas funcionavam pelo sistema de clube. Assim, cada sócio podia indicar alguém, que recebia catálogos da editora com a obrigação de comprar, ao menos, um determinado número de livros em um determinado período. Atualmente, é fácil encontrar publicações dessa editora por preços excelentes, em sebos. Uma de minhas últimas aquisições foi Ed Mort e Outras Histórias, de Luís Fernando Veríssimo. Acho que já conhecia ao menos metade das crônicas ali presentes. Mas alguns dos trabalhos ainda inéditos para mim chamaram atenção.

Vi, em alguns contos e crônicas, o que considero "embriões" de grandes sucessos do autor. Assim, por exemplo, no conto O Clube vi o que se tornaria o excelente romance O Clube dos Anjos, lançado pela Ed. Objetiva na Coleção Plenos Pecados. Em Os Diamantes Chegaram, notei semelhanças com os absurdos que compõem a trama do famoso conto Os Quarenta. Esses são apenas dois exemplos. É legal, para quem é fã de Veríssimo, procurar, em seus trabalhos mais antigos, diversas ideias posteriormente retomadas noutros trabalhos.

Sobre o personagem que dá título à coletânea de contos, já ganhamos programas para TV (um na Globo, com Luís Fernando Guimarães; outro no canal Multishow, com Fernando Caruso), longa metragem com o Paulo Betti e quadrinhos ilustrados por Miguel Paiva, dos quais falei aqui. Para quem não conhece o personagem, Ed Mort é a versão subnutrida para as histórias norte-americanas de detetive, recheadas de clima noir, damas fatais e mistérios quase não solucionáveis. Basicamente, Dashiell Hammett verde-amarelo sol forte sol, maresia, catimbó e trambique.
Eu estava lendo meu jornal favorito ― o JB de 22 de dezembro de 1976 ― encostado na porta, quando a avistei. Custei a acreditar que aquilo que ela estava fazendo com o corpo se chamava caminhar. Tinha os seios como eu gosto, um de cada lado. Os cabelos soltos ondulavam ao vento. O que era estranho, porque não estava ventando. Boca carnuda, e a carne era de primeira. Vinha na minha direção. Despi-a, lentamente, com os olhos. Estava tendo um pouco de dificuldade com o feixe do sutiã quando ela parou na minha frente. - Ed Mort Vai Longe
Foi quando ela entrou na sala. Entrou em etapas. Primeiro a frente. Cinco minutos depois chegou o resto. Ela já tinha começado a falar há meia hora, quando consegui levantar os olhos para o seu rosto. Linda. Tentei acompanhar a sua história. Algo sobre um marido desaparecido. Pensei em perguntar se ela tinha procurado bem dentro da blusa, mas ela podia não entender. Era uma cliente. Ofereci a minha cadeira para ela sentar e sentei na mesa. Primeiro, para poder olhar o decote de cima. Segundo, porque não tinha outra cadeira. - A Armadilha 
Ela estava de luto. Coitada. Pensei em pular da cadeira, beijá-la brutalmente, apertá-la contra mim, esfregar suas costas com ardor e dizer: “Meus pêsames”. Mas resisti. - A Volta de Ed Mort 
Ela sorriu. Compreendi, finalmente, o que Deus queria dizer quando criou os dentes. Convidei-a a sentar. Meus móveis eram escandinavos. Caixotes de bacalhau norueguês. Ela vestia calças tão apertadas que daria para ver as imperfeições de sua pele, se houvesse alguma. - Ed Mort Vai Fundo

Viva Vaia de Augusto de Campos / Outros livros da Ateliê Editorial / Livro-objeto


é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas
(...)
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Sampa de Caetano Veloso

Acredito que Augusto de Campos é o escritor brasileiro mais culto ainda vivo. Notei isso após lê-lo, ter contato com suas ideias e projetos e, especialmente, em entrevistas (raras) que concede por aí. Sou apaixonado por sua poesia desde meu ensino médio. Passava horas admirando o estudo tipográfico e estético aplicado pelos irmãos campos e Décio Pignatari. Poesia esta inspiradora do melhor de nossa música popular, de Caetano e Adriana Calcanhoto ao genial Arnaldo Antunes. É por algo iniciado há décadas no Brasil (com inspiração em malucos lá de fora) que, hoje, o sucesso de livros como Pó de Lua e Eu Me Chamo Antônio são possíveis. Autores mais jovens de "poemas visuais e gráficos" foram beber nesses caras, mesmo que inconscientemente. Certamente, de uma forma mais popular (ou simplória), que nem de longe "cheira" à erudição da produção de Augusto de Campos. O que tanto faz, já que o que vale é a Arte, ainda mais neste mundo cada vez mais empobrecido culturalmente.

Eu sempre quis o livro Viva Vaia em meu acervo. Mas era uma obra esgotada há bastante tempo e a edição da Duas Cidades era vendida por até R$ 300,00. Então constantemente declinava da compra. Só que a Ateliê Editorial nos trouxe uma nova edição caprichadíssima, acompanhada do CD Poesia é Risco, contendo quinze poemas musicados por Cid Campos, filho do autor e do poema-objeto “Linguaviagem”, em forma de encarte. Coisa linda, mesmo. Livro para ler, beijar, cheirar, abraçar e manter uma relação afetiva, íntima e sexual, tomando-se cuidado para não esporrar sobre as páginas e estragar tudo.

Uma curiosidade: como bom revolucionário, sempre progressista, o autor não perdeu a oportunidade de estampar, na orelha da edição, um comentário infeliz sobre um dos poemas que "denunciava" o Golpe  Militar, onde a direita seria livre; mas a esquerda, não. O que, certamente, não corresponde à História, já que as atividades intelectuais de esquerda se mantiveram em ebulição, desde que não incitassem ações de violência, especialmente de guerrilha. Enfim: revolucionário nunca perde a pencha de ser assim visto entre seus pares. E este é o mesmo Augusto de Campos que rotulou a turma da vaia contra Dilma Rousseff na abertura da Copa de 2014 de "VIPs", "gente abastada e conservadora", concluindo com um "Viva Dilma, vaia aos VIPs". Curiosamente, o poeta é aposentado do Governo do Estado de São Paulo, onde embolsa, dos cofres públicos, mais de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por mês. Duvida? É só consultar no Portal da Transparência paulista pelo nome "Augusto Luís Browne de Campos". Se isso, para ele, não é ser VIP e abastado, o que mais podemos dizer? Já desisti de tentar compreender essa turma militante, onde alguém pode ser proprietário de um triplex no Guarujá, navegar de iate particular, viver de recurso público e, mesmo assim, xingar o outro de "coxinha burguês".

Junto com Viva Vaia, aproveitei para comprar o belíssimo exemplar de Clichês Brasileiros do maluco saudável Gustavo Piqueira, proprietário da famosa Casa Rex. O livro traz histórias brasileiras contadas por meio de imagens constantes no Catálogo de clichés D. Salles Monteiro. O resultado foi divertido. E a confecção do livro, enquanto objeto, peculiar. O volume tem capa com lâmina de madeira impressa em serigrafia, fixada manualmente com fita adesiva, miolo em papel macio de excelente gramatura (pólen bold 90gr) e costura da lombada aparente. A tiragem única é de mil exemplares numerados. E tudo isso por R$ 49,00. É, sem dúvidas, um dos trabalhos gráficos, em livro, mais bonito que já me caiu em mãos recentemente. O projeto gráfico e a diagramação ficaram a cargo da "casa" de design do autor.
"Os clichês tipográficos eram matrizes gravadas em madeira ou metal utilizadas no processo tipográfico de impressão. Sistema que, se hoje é peça de museu, foi o método dominante na produção de impressos durante quase cinco séculos, desde que seus princípios foram estabelecidos pela Bíblia de Gutenberg."
D. Salles Monteiro foi uma gráfica carioca do começo do século XX. Seu catálogo foi publicado pela Ateliê em 2003 em edição fac-similar. Atualmente, o livro encontra-se esgotado e é vendido em sebos por uma média de R$ 200,00. Logo, merece reimpressão. Gustavo Piqueira dedica as primeiras páginas de seu livro para comentar brevemente acerca do catálogo (como no trecho acima reproduzido), isolar imagens "curiosas" e, logo após, contar a História do Brasil com a aplicação do agrupamento desses "clichês". Tenho que admitir: ele foi bem sucedido nisso. Assim, começamos com a chegada dos portugas, seus escambos com índios, amancebos com as indígenas e trazida de negros africanos. Após, a miscigenação aumenta com a vinda de imigrantes europeus. Das lavouras passamos à indústria. Dos casarões isolados na extensa zona rural, nos aglomeramos em cidades e nos trancamos em residências (gaiolas) para nos proteger. Entramos num capitalismo insipiente por meio do consumo que começa a despontar. Surgem carros, engarrafamentos, boemias, nichos sociais e entropia de toda a ordem. Tudo começa, passa e termina (?) numa bela manhã de sol à beira mar.

E, por falar em trabalho gráfico, foi justamente por meu interesse em arte gráfica que a Ateliê Editorial se fez presente no meu cotidiano de colecionador. Assim, há alguns anos, mantenho para consulta regular as edições: Desculpe a letra, de Guto Lacaz; 530 gramas de ilustrações de Marcelo Cipis; Beauty & Fashion de Mário Cafiero e Pincelagens & Debuxos de Hélio Cabral.

Essa pegada de livro-objeto, do citado "amor táctil" de Caetano Veloso em sua música Livros me chama atenção desde que percebi como o livro impresso está sendo extinto gradativamente e dando lugar à supremacia do formato digital. Acredito que apenas o investimento no livro enquanto objeto cultural poderá lhe dar fôlego e despertar o interesse de novos leitores ou de pessoas que, com o cotidiano cada vez mais corrido, tenham abandonado o maravilhoso hábil de ler no papel. Editoras como a Ateliê, DarkSide Books, Cosac Naify e Lote 42 notaram isso e já estão se esforçando para [re]conquistar leitores de... livros. Abaixo, antes das imagens com edições da Ateliê Editoral aqui comentadas, aproveito para compartilhar vídeo onde o grupo da Casa Rex cola areia nas capas de Seu Azul (também do designer Gustavo Piqueira) antes de comercializá-lo. Trabalho lindo, sem dúvidas. E que dá aquele aspecto ainda mais humano ao volume, pelo viés artesanal de sua confecção.

Fico por aqui. Curtam o vídeo abaixo logo após as imagens (é legal ver o engajamento das pessoas dando o toque final aos volumes) e confiram as fotografias a seguir, retiradas de meu acervo. Abraços, amiguinhos!






sábado, 31 de agosto de 2019

Onde Cantam Os Pássaros de Evie Wyld


Onde Cantam Os Pássaros é o único romance que li da belíssima livreira inglesa Evie Wyld. A trama é simples: Jake White cria ovelhas numa ilha britânica anônima. Seus animais passam a ser atacados por algo aparentemente sobrenatural. Um homem misterioso aparece em sua propriedade. Seu passado, na Austrália, é obscuro e parece persegui-la. O diferencial é a maneira como a escritora aborda esse mote aparentemente tão simples: a estrutura narrativa. A cada capítulo, há mudança no tempo narrativo. Assim, intercalamos a história da Jake fazendeira com a garota fujona, perdida nos desertos australianos. A vida anterior da protagonista, contudo, é contada em retrocesso, nos fazendo "escavar" esse passado misterioso a cada página. É uma escrita não-linear; porém, sem enrolação, de fácil localização e acomodação para o leitor.

O capricho editorial é marca da DarkSide Books. Além da capa dura brega (que adorei) o corte das 240 páginas é negro e acompanha marcador em tecido da mesma cor (utilíssimo, para não ficarmos correndo atrás de marcadores de papel, que tão fácil se perdem). A fonte utilizada no miolo é generosa, há boas margens e o papel possui gramatura suficiente para que você não veja sinais da impressão do lado oposto. A tradução é de Leandro Durazzo e o formato é padrão: 14 x 21 cm.

Não se enganem com a capa cor de rosa bolada pela equipe da Retina 78. A obra aborda a vida dura, a condição humana, o medo e o horror. Não há heroísmo. Jake White é apenas uma mulher de idade incerta tentando tocar a vida, tendo passado por uma série de agruras e podridão após uma infeliz má escolha da adolescência. O único encanto presente na história é o canto de pássaros diversos, mencionados regularmente. Recomendadíssimo para entreter sem decepcionar-se. E o final é meio aberto à imaginação do leitor.

P.s.: esta postagem é republicação de meu blogue anterior. Comprei e li este romance no mês de seu lançamento nacional.

Nosso Homem em Havana [ e outras obras sobre mistério e arapongagem ]



Tenho uma ideia de que todo serviço de inteligência que cresce demasiadamente torna-se obsoleto. Núcleos não oficiais começam a surgir em sua gestão, linhas de comandos se perdem ou são subvertidas. Talvez essa hipótese explique porque pequenos serviços de inteligência ao redor do globo é que realmente conquistam respeito, a exemplo das agências de Israel e da Jordânia. Dizem que a Agência Brasileira de Inteligência criada por Fernando Henrique é uma das maiores do mundo, mas que não serviria para nada, por exemplo. Vai-se saber...

Numa coisa acredito: a maioria dos serviços de inteligência, hoje, não sabem de onde vieram nem aonde irão, tampouco o que fazer de efetivo além de analisar informações abertas que talvez signifiquem algo ou, talvez, não. E assim vão tocando o cotidiano burocrático, com seus funcionários preocupados em bater o ponto religiosamente do trampo e, assim, pagar o pão e o leite de cada dia. 

Não me interesso tanto pelo tema espionagem. Os poucos livros que me caem em mãos são lidos com certo interesse. Mas me vêm bem ao acaso. Não cato obras com esse tema. Prefiro mesmo outros gêneros. Esses dias, limpando as estantes, reservei uns títulos onde o jogo de informação e contra-informação dá o mote à trama. São obras que indico por serem divertidas. Estão nas imagens acima. Destaco que Os Espiões de Veríssimo aborda, na verdade, um grupo de amigos que se unem em torno de escritos de uma garota desconhecida e empreendem ação particular para salvá-la. De qualquer forma, há o jogo de xeretamento no mote, e por isso incluo-o na presente lista. Ainda sobre Veríssimo, indico bastante O Opositor. Conquanto seja uma narrativa curta e realizada por encomenda para a série Cinco Dedos de Prosa, o autor foi bem sucedido ao abordar algo verdadeiro: a realidade social, política e cultural não é tão simplória como a maioria acredita.

De todos, o que mais acho interessante pelo viés de pura espionagem é Nosso Homem em Havana, escrito pelo espião britânico Graham Greene. A história se passa na pré-revolução cubana. Mas esta, em si, não é relevante. Em momento algum o autor aborda os aspectos políticos e sociais que levarão à tomada do poder por Fidel Castro e suas tropas terroristas. O foco é no inglês Jim Wormold, vendedor de aspiradores de pó que rala para sustentar sua filha adolescente, sempre cortejada pelo temido capitão Segura. Um certo dia, Jim Wormold é abordado pelo espião britânico Hawthorne para que forneça informações à Inteligência inglesa acerca da conjuntura política cubana. Mas Jim Wormold nada tem a oferecer, só que passa a inventar mentiras como forma de, assim, obter dinheiro da Coroa. Contudo, suas invenções coincidentemente encontram respaldo em acontecimentos recentes, como se se tornassem realidade.

O que se destaca em Nosso Homem em Havana é algo claramente desenvolvido por Umberto Eco em O Pêndulo de Foucault: na paranoia, no caos semiótico onde espiões e meros xeretas brincalhões atuam, mentiras podem se tornar verdades anteriores ao nascimento da própria mentira. Assim, não raro, conspiradores são engolidos por suas conspirações. Isso é melhor destrinchado em O Pêndulo de Foucault, embora permeie outras obras de Eco, a exemplo de Baudolino.

Resumindo: recomendo todos os livros aqui arrolados. Serviram para dar aquele abalo saudável aos miolos às vezes enferrujados. E, às vezes, para desopilar com as loucas aventuras de um investigador brasileiro subnutrido, por que não um pouco de Ed Mort?, tanto em prosa quanto em HQ, algo que sempre recomendo. 
  • O homem que matou Gelúlio Vargas - Jô Soares
  • A Companhia - Robert Littell
  • O Pêndulo de Foucault e Baudolino - Umberto Eco
  • Os Espiões e O Opositor - Luís Fernando Veríssimo
  • Nosso homem em Havana - Graham Greene
  • O espião que sabia demais e O espião que saiu do frio - John le Carré

domingo, 25 de agosto de 2019

A Dança da Morte de Stephen King [ Resenha, Romance ]


Apenas os cogumelos vicejavam grandes e gordos no escuro, 
até mesmo ele sabia disso, nossa, como sabia.


A primeira edição de A Dança da Morte (The Stand) de Stephen King passou por um corte de quase quatrocentas páginas, em razão de problemas de contabilidade da editora. Posteriormente, o autor revisou todo o texto e reinseriu quase tudo novamente. Hoje, você pode ler a tradução brasileira de Gilson Soares em suas 1245 páginas, em letra - infelizmente - miúda. Acho que livros assim deveriam ser impressos em encadernados resistentes, com capa dura. Ou então em dois volumes, que poderiam ser acondicionados numa caixa. Tentar colar tanta página numa brochura não é legal com o leitor/colecionador. E, mesmo que o sujeito não seja colecionador, também há outro problema: o volume não resiste a várias leituras e a ideia de que um livro deveria resistir à passagem do tempo para atingir mais leitores cai por terra.

Insisto sempre na ideia acima, pois acredito que, se todos os leitores brasileiros espernearem, o mercado nacional terá um pouco mais de respeito conosco. Até o momento, conheço apenas uma editora nacional que disponibiliza versões "HC" e "TP" simultaneamente, para todos os tipos de bolso: a caprichosa DarkSide Books. Além disso, a Cosac Naify também vem, há algum tempo, investindo em edições caprichadas, puro deleite tátil. Numa época de desapego à leitura em meio impresso, práticas assim ajudam para despertar, novamente, o gosto pelo papel.

Os leitores de Stephen King são fieis e não se contentam apenas com um ou dois títulos. Eles querem ler tudo. É um público que investe no prazer da leitura de seu autor preferido. Penso que valeria a pena investir melhor neste filão. A Suma de Letras (Objetiva) mereceria - acho - não ter mais os direitos de publicar, no Brasil, livros do autor. É realmente tão complicado oferecer versões capa dura - de forma limitada, para evitar encalhe -  de alguns títulos mais robustos? A DarkSide Books já mostrou que não. Falta apenas boa vontade e respeito com o consumidor.

Não vou me estender muito sobre a trama do livro, pois isso deixaria esta postagem imensa. E nem sei como resumiria tantas tramas e subtramas aqui. Seria cansativo para mim e para quem lesse a resenha.

Brevemente, vamos lá...


O enredo é dividido em três partes. Na primeira, assistimos como o vírus da supergripe foi deflagrado e se espalhou rapidamente sem controle algum por seu criador: a [des]inteligência militar americana. O Capitão Viajante (como fica conhecido pela facilidade de contágio rápido entre as duas costas) aniquila - estima-se - quase 98% da população mundial e dos animais domésticos. Na segunda parte, acompanhamos o cotidiano do remanescente norte-americano agrupado em dois núcleos: em torno da generosa e devota cristã Mãe Abigail e junto ao enigmático Randall Flagg, o "homem escuro", o "incorrigível", o "Adversário". Na terceira e última parte, a permanência dos dois agrupamentos torna-se insustentável após a primeira investida de Flagg à pequena cidade de Boulder; e, assim, há o confronto.

A deflagração em escala planetária do vírus, ironicamente, se dá por um pequeno acidente. Todo o centro de pesquisa de armas biológicas mantem proteção eletrônica contra contágio, onde automaticamente a área fica isolada. Mas apenas um homem consegue escapar da quarentena, por sorte e fração de segundo. Charlie Campion foge, depois, acompanhado de sua esposa Sally e da criança Baby LaVon. E, já no Texas, iniciam a dança da morte. Bastam quatro dias para o vírus matar um adulto saudável.


Foi divertido e empolgante acompanhar a trajetória de cada um dos principais personagens, especialmente seus dramas pessoais pré-crise e como essas circunstâncias repercutiram na sobrevivência pós apocalíptica. O afável e às vezes irritante Stu. Frannie, forte/debilitada, segura/confusa. Larry Underwood, um homem em construção. Nick Andros, o mudinho boa praça que poderia ter desenvolvido uma sede por tirania e controle, acaso não morto prematuramente. Harold, ex-gordinho espinhento vingativo que mereceu tudo de ruim o que lhe ocorreu para aprender a deixar de ser burro. Julie Lawry, a prova de que, mesmo após o fim do mundo, as "periguetes" terão seu espaço. E tantos outros. Mas o personagem mais instigante é mesmo o vilão Randall Flagg, o Turista Andarilho. Em um momento de transe do personagem Tom Cullen, ele é descrito como:
Ele parece como qualquer um que a gente vê na rua. Mas, quando sorri, os pássaros caem mortos das linhas telefônicas. Quando olha pra gente de certa maneira, a nossa próstata dói e nossa urina queima. A relva fica amarela e morre, quando ele cospe. Ele está sempre fora. Ele veio do tempo. Não sabe quem é. Tem o nome de mil demônios. Jesus o jogou no meio de uma vara de porcos certa vez. Seu nome é Legião. Ele tem medo de nós. Estamos dentro. Ele conhece magia. Pode chamar os lobos e viver nos corvos. Ele é o rei de lugar nenhum. Mas tem medo de nós. Tem medo de... dentro.
Acho que o homem escuro nasceu humano. Porém, adquiriu contornos sobrenaturais sem nem mesmo tomar dimensão do que lhe assumia a natureza. Já na sua apresentação, King nos mostra que ele esteve ligado aos eventos mais sombrios de ódio e violência ocorridos a partir da década '50 na América do Norte. Flagg atraía o mal ou seria atraído por este; ou ambas opções. Um vilão - uma entidade - que ficará grudada em meus miolos por bastante tempo. De certa forma, Flagg é uma espécie de vórtice da história de violência americana. Um sonho de Larry Underwood é emblemático quanto a isso:
Ele baixou o olhar para a primeira fila e sentiu um súbito jorro gelado de medo. Charles Manson estava ali, o na testa reduzido a uma cicatriz branca e retorcida, aplaudindo e cantando. Também Richard Speck, olhando-o com olhos arrogantes e impudentes, um cigarro sem filtro tremelicando entre os lábios. Ladeavam o homem escuro. Atrás deles, John Wayne Gacy. Flagg liderava o coro.
Aparentemente, o Andarilho será encarnado por Matthew McConaughey na próxima adaptação do livro às telas. Certamente, fará justiça ao papel. Passei a confiar bastante em sua capacidade após interpretações recentes em OuroClube de Compras Dallas e Interestelar.

Flagg e King nos bastidores da minissérie.

Um dos aspectos mais interessantes do romance, para mim, é a exposição convincente de como o vírus incubado em uma família de três membros pode espalhar a morte ao redor do globo. King foi inteligente ao exemplificar a maneira pela qual esse vírus em constante mutação poderia se espalhar rapidamente entre as costas americanas. Para atingir o restante do planeta rapidamente, o autor usou uma explicação de gelar os ossos. A inteligência militar americana, convicta do Armagedom, determina que agentes de campo situados na China e Europa deflagrem a contaminação. O que começara por um mero acidente, terminou com a investida biológica proposital norte-americana contra o mundo.

Finda a leitura, concluí que se trata, dentre outras coisas, de um romance sobre sacrifício e purificação. Me pergunto até onde as forças que conduziram Mãe Abigail, realmente, estavam preocupadas com a sobrevivência do Bem em si. Além disso, o final nos deixa com aquela sensação de que, mesmo higienizados por mil hecatombes nucleares, jamais abandonaremos nossa natureza austera e a ânsia de dominação. O romance possui prólogo e epílogo, intitulados, respectivamente, de O Círculo se Abre O Círculo se Fecha. E o pensamento final de um certo Russell Faraday (sem muitos detalhes aqui para não entregar o enredo), encerra a narrativa assim:

A vida era como uma roda que nenhum homem podia deter por muito tempo. E, no final, ela sempre girava de novo para o mesmo lugar.
Alguns leitores acham o livro excessivamente longo. Em seu prefácio, Steve comenta sobre essas críticas, de uma maneira clara: podemos resumir qualquer história a poucas páginas; contudo... haveria a mesma graça ao lê-las? Eu particularmente gosto do jeito que ele escreve, extenso sem ser prolixo e cansativo. Às vezes, o tempo de uma hora na narrativa de King pode consumir dezenas de páginas, uma penca de personagens principais e secundários, vários locais distintos e infinitas subtramas quase insignificantes. Mas não é a vida assim? Sob a redoma ocupou 950 páginas para narrar uma semana na vida de alguns habitantes da pequena Chester's Mill. E lemos tudo achando que o autor poderia ter escrito mais mil páginas para complementar a trama, pois tudo o que ele nos traz é agradável e divertido para se saber. Com King em mãos, me sinto um adolescente assistindo à Sessão da Tarde na década de '90.

Durante a leitura, encontrei pequenos erros que atribuo à falha na digitação (e da revisão, claro). Acho isso até normal. Só chateia a manutenção da tradução do título. The Stand é, além do título original da obra, o da terceira parte, quando há o confronto entre as forças antagônicas. É algo que poderia ser traduzido como "O Esforço", "A Luta" ou - melhor - "A Resistência". Embora o romance Salem's Lot (também de King) tivesse no Brasil o título de A Hora do Vampiro (durante décadas), a Suma de Letras corrigiu isso na última edição. Poderiam fazer o mesmo com A Dança da Morte. Por mais que o autor se refira literalmente a uma "dança da morte" (utilizando essa expressão em alguns momentos da trama), parece se forçar demais a barra em meter esse título de impacto numa obra intitulada de forma tão simples e despretensiosa.

O romance foi adaptado para a televisão em 1994 (vinheta de abertura no vídeo acima). Vi apenas alguns trechos de episódios, por isso não tenho como afirmar nada acerca da qualidade da adaptação. Não gostei, contudo, da estética escolhida. Pelo pouco que vi, me pareceu um trabalho meio porco. Entretanto, destaco que a série ganhou vários prêmios e alguns fãs ainda a elogiam. Gostaria de assisti-la, posteriormente, mais pelo fato de ser protagonizada por minha amada Molly Ringwald. Fala-se que uma nova adaptação será feita, provavelmente dividida em quatro filmes. A história também foi levada aos quadrinhos pela Marvel, com roteiro de Roberto Aguirre-Sacasa e arte de Mike Perkins. Já vi pedaços de scans, mas também não posso dizer se vale a pena, pois não me interessei em ler tudo, pois não consigo gostar de adaptações de romances para HQs. Mas fica a critério do gosto de cada um.

O público americano teve editada a primeira edição de luxo da versão sem cortes de The Stand, autografada pelo escritor e o ilustrador Bernie Wrightson (bem conhecido do público de quadrinhos por seu trabalho à frente de O Monstro do Pântano). Limitada a 1250 unidades e numerada, a encadernação é em couro legítimo (não percalux nem similar) com corte dourado. Para guardar o volume, acompanha caixa de madeira forrada em tecido. Esse mimo foi posto à venda por US$ 3.200,00 e esgotou rapidamente.

E, por  último, acerca do romance, destaco que Mãe Abigail Freemantle - a líder negra centenária do povo da Zona Franca de Boulder, a personificação do Bem e escolhida por Deus para guiar o remanescente humano à luz - é filiada ao Partido Republicano, fazendo assim justiça às origens desta legenda conservadora, essencial ao fim da escravidão americana.

Abraços iluminados e até a próxima.




Update. Esta postagem foi escrita há vários anos, no blogue anterior. Na época, Charles Cosac ainda não cogitava fechar sua editora, mesmo esta não sendo lucrativa em seus dezenove anos de resistência.

sábado, 24 de agosto de 2019

It: a coisa [ romance de Stephen King ]

Olha só, uma resenha!



Ele acordou só uma vez: quando, em algum inferno escuro, fedido e úmido  onde não havia luz,  luz nenhuma, a Coisa começou a se alimentar. (p. 809)

Mas é bom pensar assim por um tempo no silêncio limpo da manhã, pensar que a infância tem seus segredos doces e confirma a mortalidade, e que a mortalidade define toda a coragem e todo o amor. Pensar que o que já ansiou pelo futuro também precisa olhar para trás, e que cada vida faz sua própria imitação da imortalidade: uma roda. 

É o que Bill Denbrough pensa às vezes naquelas manhãs depois de sonhar, quando quase se lembra da infância e dos amigos com os quais a compartilhou. (p. 1102)


Stephen King gosta mesmo de escrever (d'oh...). E é extenso sem ser prolixo, tampouco enfadonho. Algumas pessoas detestam-no; outras, amam. Parece não haver meio termo. Já eu admiro sua capacidade narrativa extensa e dinâmica, num texto fluido, sem arroubos pedantes (porém, com bom nível literário). 

A nova edição nacional de A Coisa precisou de aproximadamente 1100 páginas em fonte pequena. E o esforço em adentrar neste calhamaço e conhecer um pouco da amizade dos garotos do Clube dos Otários (originalmente, Losers' Club) contra a entidade maligna que assombra a pequena Derry vale a pena. Muito a pena. Assisti ao filme em VHS. Lá se vão anos e não recordo bem a película. Mas tanto faz, pois o romance supriu qualquer necessidade que eu ainda tinha de matar a saudade de Robert Gray, também conhecido por Bob Gray, Bobby ou Pennywise, o palhaço dançarino e sanguinário que gostava de distribuir balões de hélio e arrancar membros de criancinhas enquanto ainda vivas. No Brasil, também é chamado de Parcimonioso. Na mais recente tradução brasileira, evitaram esta denominação. 

A cidade Derry integra a geografia fictícia de King para o Maine, assim como Chester's Mill, Jerusalem's Lot e Castle Rock. Mas referências reais sempre são utilizadas para situar o leitor. Vários elementos comuns em seus livros também estão presentes, como o temido presídio de Shawshank (cenário, aliás, do prestigiado filme Um Sonho de Liberdade, adaptado de sua novela Rita Hayworth and Shawshank Redemption).

É complicado falar bem de uma obra tão extensa em poucas linhas. Em termos de sinopse, podemos dizer que se trata da vida de sete amigos que, quando crianças, se unem em torno de um grande e misterioso mal a assombrar uma cidade há décadas (ou milênios!), precisando reunir-se novamente, quase vinte e cinco anos depois, para o mesmo fim. De maneira mais ampla, é a história do mal em si, do medo e do terror que nasce e se alimenta do próprio assombro de uma determinada região. Acho que It é um romance sobre o lado sombrio de uma cidade, enfim. E Derry, com seu maneirismo provinciano, casinhas bonitas com gramados verdes e boa vizinhança onde todos se conhecem, não deixa de ser parecida, em seu âmago, com uma "prostituta morta com vermes saindo da boceta", para usar as palavras de Don Hagarty, personagem da história, logo na Primeira Parte.

E, realmente, Derry é um microcosmo de uma dura realidade permeada por ódio racial, violência doméstica, sexismo e dissimulação social de toda ordem. Já na década de '50 nos deparamos com crianças que costumavam torturar pequenos animais domésticos, parricídio, psicopatas de cinco anos de idade que matam bebês e até mesmo paranoia e homossexualismo infantis. Derry parece se apresentar como vórtice natural para uma cadeia de dor. E, próximo à metade do romance, o pai de Mike Hanlon, após narrar ao filho a morte de quase vinte negros num acampamento militar, queimados pela Legião da Decência Branca, arremata o seguinte: "É por causa do solo. Parece que coisas ruins, coisas cruéis, se dão bem no solo desta cidade. Pensei nisso várias vezes ao longo dos anos. Não sei por que é assim... mas é". Não há bem um personagem principal no romance. O mais próximo de protagonista seria Bill Denbrough. Entretanto, todos os sete garotos o são. Além disso, Derry também é uma personagem na trama, e não apenas mero ponto geográfico.

Uma nota curiosa. Também por Will Hanlon é mencionado que, em Derry da década de '30, já esteve o então soldado Dick Hallorann, o mesmo cozinheiro que conhecemos um pouco melhor no excelente romance O Iluminado. Este cruzamento de personagens entre obras é comum em King. Aliás, há uma conexão maior entre ItO Iluminado: a presença do mal não como habitante de um lugar, assombrando-o; mas, sim, um lugar como "O Mal" em si. Derry é um lugar macabro, assim como o Overlook.

Outro personagem de romance distinto que faz uma ponta na história é o automóvel Plymouth Fury 1958 branco e vermelho, protagonista do romance Christine, também adaptado para o cinema em 1983. Em It, o carro é oferecido como cortesia de Pennywise ao insano Henry Bowers, para que chegue até o Derry Town House e mate cinco dos Otários que ali estão hospedados. Lembrando: os protagonistas se autodenominam integrantes do Clube dos Otários.

Também encontrei uma referência de It num romance mais recente de King: Sob a redoma. A mesma marca encontrada na pequena porta de madeira que dá acesso ao lar de Pennywise no subsolo de Derry é a encontrada por Rusty Everett e amigos no estranho artefato depositado no pomar dos McCoy. Fotografei as marcas e elaborei a imagem abaixo. Até onde pesquisei brevemente, esta "marca" é comum em diversas obras do escritor ainda não lidas por mim.




Dentro da cidadezinha, um local é emblemático: o Barrens, o trecho sujo onde a população descarta lixo e esgotamento há décadas e por onde correm águas de canais e do Kenduskeag (riacho realmente existente no estado do Maine). Enquanto eu lia It, sempre pensava numa área próxima à minha casa que associei imediatamente ao "Barrens". Não há denominação sabida para o trecho. Trata-se de um pedaço morto do rio Guaribas entre dois bairros da cidade onde vivo, parte de um grande trecho de margem fluvial entre duas rodovias. O curioso é que esta passagem de matagal, lama e água conhece pouco desenvolvimento, mesmo estando encravada na zona urbana do município e entre dois bairros relativamente grandes (de acordo com os parâmetros locais). Passo muito por esta área para cortar caminho. As pessoas evitam por ser meio ermo. Mas até gosto dessa desolação, especialmente à noite (quando aparecem várias corujas). O "meu" Barrens fica a 500 metros de minha casa.

Todos os elementos sempre presentes em obras de King estão em It. Em vários capítulos, somos surpreendidos com "minispoilers" do autor, que sempre gosta de nos avisar de antemão o que poderá acontecer com um personagem; e nos deixa ainda mais ansiosos com isso, pois queremos descobrir "como" aquilo ocorrerá. A música americana também é marcante. Tanto que, na penúltima página, há até mesmo uma extensa relação de todas as canções mencionadas durante o romance.

Novamente, destaco o péssimo acabamento de nossas brochuras. Um livro tão robusto merecia um encadernado. Após a primeira leitura, o volume já pede socorro. Considerando que nosso país dá aos livros imunidade tributária, poderiam caprichar mais nas publicações. Algumas editoras até estão dando o bom exemplo por aqui. Mas a Objetiva ainda engatinha neste sentido: falta de zelo no acabamento, mesmo que em tiragens limitadas, como opção capa dura ao leitor. A tradução que li é de Regiane Winarski. Mas também não gostei dessa adaptação para o título original. Poderiam tê-lo mantido integralmente, sem complemento. Ou apenas traduzi-lo para "A Coisa". Mas a redundância desmiolada de It: a coisa... é coisa de gente de bastante mau gosto. Acredito que, melhor ainda seria apenas "Coisa" (sem o artigo) ou, então, "Aquilo". Dei uma conferida na versão digital original e "It", no contexto da trama, me pareceu realmente melhor adaptado, para nós, como "Aquilo" ou qualquer outro pronome demonstrativo neutro. Ao menos, é que o penso por enquanto.

Muita gente pergunta a quem leu o livro: "O que é realmente o palhaço que parece mudar de forma?". King não diz esmiuçadamente. Não vou falar muito, mas Bill (líder do Clube dos Otários) acredita tratar-se de uma entidade conhecida em várias culturas pelo mundo, especialmente pela dos índios Algonquinos do nordeste norte-americano (onde fica a Nova Inglaterra, e, logo, o estado do Maine). Além disso, a existência da Coisa seria ancestral, primitiva - porém, complexa - e de origem, certamente, cósmica. Não estou dando spoilers, pois não acreditei nessa explicação toda e nem o autor foi claro a respeito. Fiquei com a ideia de que "Aquilo" é uma presença antiga acomodada no solo de Derry que, com os séculos, não apenas projetou o mal em seu habitat, como, também, se alimentou dele. Acho, enfim, que a Coisa é um querer coletivo pelo mal, pela violência e crueldade. Em resumo: uma manifestação de vontade. Mas isso é mesmo apenas meu ponto de vista. Cada um pode retirar suas próprias conclusões. Já na última parte do livro, próximo ao final, a Coisa passa a se expressar. Conhecemos mais de sua natureza, de seus pensamentos e desse novo sentimento dentro de si: medo. Mesmo assim, creio, a Coisa é senil em razão de sua existência primordial e sua ausência de propósitos. Assim, acho que os pensamentos da Coisa não são confiáveis.

De qualquer maneira, King nos dá uma explicação para a existência da Coisa que remete à teoria maniqueísta da existência de Deus. A própria entidade, aliás, possuiria uma existência dualista: corpórea no subsolo de Derry, em várias formas; e incorpórea, na forma de energia no extremo de um macroverso. Mas, aí, fica a critério do leitor como assimilar as informações que nos chegam por meio das impressões dos personagens.

O romance conseguiu abordar temas "pesados", como os citados mais acima. Mas acho que a audácia maior de King foi a inserção do amor físico entre crianças. Para as feministas que veem no Principio da Smurfette um aspecto do machismo patriarcalista opressor, é bom destacar que Beverly é a única garota num círculo de sete amigos. Só que isso lhe dá poder sobre eles. E o viés sexual do relacionamento entre os meninos não é apenas conotativo. Abordando essa relação, King, em 1986, mexeu num tabu, atiçou o vespeiro que ainda rende muita discussão entre leitores.

Foi medonho, divertido e emocionante ler It. Sobretudo, gostei dos trechos bobos envolvendo a amizades dos Otários, conversando abobrinhas, comentando músicas ou algum filme exibido na televisão. Os momentos à toa nas ruas da cidadezinha ou às margens do "esgoto" do Barrens tiveram um poder evocativo sobre mim. Fui privilegiado na infância: cresci numa casa (não em apartamento), com ruas livres para brincar. A noite era nossa assim como a manhã. Jogávamos bola (futebol, vólei, handebol), organizávamos campeonatos de bola-de-gude e trocávamos gibis, assim como tentávamos a sorte com figurinhas no jogo de bafo. Havia zonas ermas onde podíamos ir em busca de aventuras, áreas de mata e riachos no bairro de minhas primas. Tive muitos amigos. Como era simples minha vida até próximo do final da adolescência! It trouxe à tona essas recordações; sem o Pennywise (felizmente) e sem surubinhas (infelizmente).

It é um romance sobre a infância. Só que os garotos do Clube dos Otários, por uma razão desconhecida, sofrem com o esquecimento de como eram próximos e de tudo o que passaram juntos. Talvez isso  seja magicamente necessário. Não sabemos. Mas, já perto do final da trama, Mike Hanlon começa a sentir que tudo será esquecido (mais uma vez; só que, agora, por todos eles). Mesmo que tente registrar algo, será apagado. Antes que isso ocorra totalmente, ele só tem algo a dizer a si mesmo: "Eu amava vocês todos, vocês sabem. Eu amava todos vocês.". É a vida que precisa seguir.

As quase 1100 páginas do romance são divididas em cinco Partes, que aglutinam os 23 capítulos e cinco interlúdios. O tempo narrativo não é linear. Dentro de um mesmo capítulo, o leitor vai e volta da década de '50 a de '80. E esse recurso foi desenvolvido competentemente pelo escritor.

No VHS onde assisti a adaptação cinematográfica, havia o subtítulo "uma obra-prima do medo", recordo bem. Só que deixou a desejar quanto a esse "efeito", por assim dizer. Já o livro bem que poderia ter essa menção ostensiva na capa, pois lhe faria jus. Sem dúvidas, um grande tratado sobre o medo em si, enquanto entidade mais que palpável.

Em pesquisa superficial no Google encontrei vários links para baixar o livro gratuitamente. Se você tem leitor digital e gosta de ler no ecrã, faça isso. Stephen King está velhinho e podre de rico. Ela não vai se queixar por seu download. E, além disso, as editoras nacionais estão cagando e andando para você, com brochuras caras e fuleiras que mal resistem a muito manuseio. Aliás, o próprio autor grita aos quatro cantos que não precisa mais de grana.

Fico por aqui. Abraços parcimoniosos e até a próxima.


Update. Esta postagem foi originalmente escrita há alguns anos, para o blogue anterior. Há pouco tempo, It retornou ao cinema em nova produção que não vi nem pretendo ver.

O Cemitério Maldito de Stephen King [ Cinema, Romance ]



Sometimes dead is better.

A morte é um mistério; o sepultamento, segredo.

Vi Cemitério Maldito (1989) pela primeira vez quando era criança. Gostava de filmes de terror. Era meu gênero preferido. Depois, assisti à continuação e também gostei. Hoje, percebo como são produções fracas. Mesmo assim, o primeiro filme guarda certo valor estético e até mesmo detém elementos que agradam ao novo público. Contudo, após você ler o livro, percebe como a adaptação é pobre. E isso porque o roteiro também foi escrito pelo Rei do Maine. Não tenho aquelas firulas acerca da necessidade de adaptações fiéis à obra escrita. Destaquei isso, por exemplo, numa postagem antiga (confira). Penso que são plataformas distintas e, muitas vezes, querer ser fiel à obra primeva pode ser má escolha do cineasta. E aí, creio, está o erro de King: manter o roteiro similar ao livro, mas enxugando bastante a narrativa, o que tornou a produção meio insossa. Se optasse por caminho oposto (pegada mais afim com aspectos notadamente cinematográficos, respeitando limitações e características próprias da tela), talvez tivesse escrito filme melhor.

Ao enxugar todos os elementos introspectivos essenciais à narrativa e manter apenas ações nas telas, Stephen King nos deu uma trama que, creio, poderia ser superior. Mas isso parece lhe fazer o estilo, acredito. Pelo que percebi em diversas entrevistas com o autor, para ele, mexer demais na obra escrita não é bem vindo. Para que Pet Sematary fosse rodado, por exemplo, o escritor exigiu o cumprimento à risca de seu roteiro e que as filmagens se dessem no Maine. Além disso, por diversas vezes, criticou Stanley Kubrick por O Iluminado, enquanto acha que a adaptação subsequente, feita para a TV, foi melhor. Discordo do autor quanto a isso; e considero a obra de Kubrick a melhor adaptação de uma obra de King. Aliás, Stanley Kubrick foi o único a ter peito para transpor a atmosfera densa dos livros de King para o cinema. Quase tudo o que já se adaptou por aí ficou meio-boca. Convenhamos, claro, que muita coisa da obra original é difícil de se digerir no cinema, ainda mais porque estúdios buscam sempre reduzir a classificação etária para atrair público mais abrangente. Hoje, penso, isso é bobagem. Afinal, baixam-se toneladas de informação de graça pela internet e cinema tornou-se um passatempo não mais tão empolgante (e relevante) quanto antes. Imagine, por exemplo, Cemitério Maldito com a fala abaixo incluída no roteiro:
Norma morreu e não vai haver ninguém para chorar por você – disse Gage. Que rameira ela era, hein? Fodeu com todos os seus amigos, Jud. Dava o cu para eles. Era o que ela gostava mais… agora está queimando no inferno, com artrite e tudo. Eu a vi lá, rapaz. Eu a vi.
A trama gira em torno do médico Louis Creed que, com esposa (Rachel) e dois filhos (Ellie e Gage), mudam-se para a pequena Ludlow, cidadezinha próxima a Castle Rock, integrante da geografia fictícia do Maine. Ali, ele trava amizade com o casal de idosos Jud e Norma Crandall. Jud repassa ao novo amigo informações acerca do local, desde sobre a trilha para o pequeno cemitério de animais próximo até o perigo representado pela movimentada rodovia 15 que corta o local, onde muitos bichos domésticos são atropelados. No primeiro dia de trabalho, Louis enfrenta uma estranha experiência com o estudante Victor Pascow, falecido tragicamente e que lhe diz coisas estranhas sobre o cemitério de bichos e o “outro” cemitério. Quando Church – o gato de Ellie – é atropelado e morto, Jud (por motivos íntimos discutidos bastante na obra escrita) faz Louis enterrá-lo no “outro cemitério”, além do de animais. Trata-se, talvez, de solo amaldiçoado na cultura dos micmac, onde o que é ruim ali habita. Pouco tempo depois, Church retorna à vida, de maneira estranha; é como se, do gato, voltasse apenas o corpo, mas preenchido com algo mais. Depois, Gage também e morto da mesma forma, e, inevitavelmente, Louis o enterra no solo maldito. E este não é final de uma série de tragédias sobre a família Creed. Mais ainda virá!

No cinema, pareceu desconexo a forma como tudo se desenrola. Revi o filme para ter essa certeza. No romance, notamos que, além dos aspectos notadamente humanos diante da perda de entes queridos, todo poder do local leva a uma série quase metodicamente planejada de eventos. O gato estava castrado e molenga antes de falecer, de maneira que seria improvável ter saído para longe e ser atropelado. Esse vórtice negativo nos recorda o hotel Overlook de O Iluminado e a Casa Marsten em A Hora do Vampiro. No cinema, também se perdeu a característica da pequena Ellie em manter contato com algum resquício do estudante Pascow e seus dons premonitórios que remetem bastante às crianças iluminadas de O Iluminado e sua sequência Doutor Sono.

Sempre há música abundante nos livros de Stephen King. Praticamente em todos os romances nós encontramos aquele momento musical, letras transcritas ou apenas pequenas menções. Em Pet Sematary o destaque fica para Ramones, desde citações internas a verso como epígrafe a capítulo. Além disso, num determinado momento, Louis Creed utiliza o pseudônimo de Dee Dee Ramone ao registrar-se no hotel com acesso fácil ao cemitério onde está o cadáver de Gage. No cinema, o caminhão que atropela Gage toca Ramones a toda altura. E em 1989, após um contato com King, os Ramones gravaram a canção... Pet Sematary.

Uma curiosidade: além de assinar o roteiro, King atua na produção como o sacerdote à frente do enterro de Missy Dandridge. Como sempre, em uma péssima atuação. Ver King na tela não é legal. Mas, claro, nada se compara à sua "atuação" em Creepshow (1982). Sobre a senhorita Dandridge do filme, destaco que, no romance, ela não é a encalhada frustrada ali retratada, sequer chega a falecer na trama original. Trata-se apenas de uma vizinha generosa e prestativa dos Creed. Além disso, serviu, de certa maneira, para substituir a esposa de Jud, Norma, para o momento do funeral. Para a adaptação, suprimiram Norma do enredo, como se Jud fosse um solteirão ou viúvo de longa data.

O ponto mais positivo da adaptação, acho, foi a caracterização medonha de Zelda, irmã doente de Rachel que lhe atormentou a infância com seu azedume, enquanto definhava por meningite raquidiana. Como não conseguiram uma atriz magra e esquista o suficiente, optaram pelo ator Andrew Hubatsek. A caracterização ficou foda, como podemos ver no gif abaixo.


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O protagonista Louis Creed destoa no universo ficcional de King. Em regra, pais representados em suas obras não são flores que se cheirem. Talvez isso se deva ao fato do próprio autor, ainda criança, ter sido abandonado por seu genitor e sua mãe ter ralado pra burro, sozinha, para sustentá-lo. A figura materna em Stephen King, quase sempre, é forte e generosa; a paterna, o inverso. Pais violentos estão presentes em narrativas como It, por exemplo, com o pai rabugento de Beverly Marsh e em alguns contos. Em O Iluminado, Jack Torrance tenta estraçalhar a cabeça de seu filho Daniel com o taco de roque; a proteção fica a cargo da mãe Wendy. Até mesmo em obras mais recentes esse aspecto é notório, como em Sob A Redoma, quando Big Jim planeja a morte de seu único filho no hospital, temendo que ele se torne um estorvo maior. Em aspecto mais amplo, destaco ainda Dança da Morte, com o bem personificado em Mãe Abigail e a essência do mal encarnada no pai do agrupamento adversário: Randal Flagg.


O título do livro chama atenção. "Sematary" está errado porque é a reprodução do que crianças escreveram na placa na entrada do local, ao invés de cemetery. No livro, brincaram com a tradução optando por "simitério". Isso é emblemático na trama: o "simitério" é bem cuidado por gerações de crianças da região, que tentam controlar o mato, mantendo a trilha razoavelmente limpa, bem como os mini túmulos. As cruzes e lápides são feitas com tudo quanto é material de refugo: latas velhas cortadas a alicate, pedaços de tábuas e de pedras como ardósia. Estranhamente, as sepulturas seguem o sistema concêntrico, similar ao em espiral dos micmacs. Essa procissão de crianças unidas em torno de algo sombrio (como a morte às vezes nos parece) me trouxe à mente o conto As Crianças do Milharal.

A edição que li foi da Suma de Letras (selo "vergonha" da Objetiva, onde se incluem obras de baixo valor literário, destinadas a mero entretenimento). O volume é padrão: brochura com orelhas, papel pólen soft - aquele amarelinho que não cansa a visão durante a leitura -, formato 16 x 23 cm, 424 páginas e tradução de Mário Molina.

Em diversas postagens, sempre critiquei a falta de tato da Suma de Letras para lidar com o público fiel de alguns autores. Quando resenhava obras nacionais, postava imagens de edições especiais gringas, com capa dura, sobre capa, papel especial e até mesmo ilustrações. Insisti que, mesmo em tiragens limitadas, os leitores de King dariam chances a essas edições. Afinal, além de leitores, também somos colecionadores, de certa forma. E, com o avanço da leitura digital, os livros poderiam ser mais valorizados enquanto objetos táteis. E não é que a Objetiva abriu os olhos para isso? Oxalá! Antes tarde que nunca, como dizia vovó. Para o segundo semestre estão programados Cujo e A Incendiária com novo projeto editorial, conteúdo extra e capa dura. Acredito que as publicações da DarkSide Books influenciaram nisso de alguma forma. Aguardemos!


Abraços fúnebres e até a próxima.

A Hora do Vampiro de Stephen King

Sinopse divulgada de 'Salem. Ben Mears havia jurado nunca mais pôr os pés em Jerusalem's Lot - ou 'salem, como é conhecida por seus habitantes. A cidadezinha onde passou quatro anos de sua infância foi palco de horrores que ainda lhe tiram o sono. No verão em que, finalmente preparado para exorcizar seus demônios, decide voltar a 'salem, descobre que o mal ainda vive e precisa ser sepultado. 
Junto com Ben, chegam à cidade dois forasteiros: o sr.Barlow, portador de um segredo que mudará a vida de todos à sua volta, e Mark Petrie, um menino obcecado por monstros e filmes de terror. Logo em seguida, uma série de fatos inexplicáveis vem perturbar a rotina provinciana de 'salem: uma criança é encontrada morta; habitantes desaparecem sem deixar vestígios; uma estranha doença começa a fazer vítimas. A morte lança sua sombra gélida sobre a cidade, e Ben e Mark escolhem o caminho que resta aos sobreviventes: fugir. 
Mas os destinos de Ben, Mark, Barlow e Jerusalem's Lot estão para sempre ligados. E é chegada a hora do inevitável acerto de contas.
Às vezes penso que nenhum livro foi tão relevante a Stephen King quanto A Assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson. A ideia de um ponto geográfico como vórtice para a ressonância do mal em suas obras, creio, vem dessa leitura. É assim em IT, onde algumas vezes Pennywise nos é revelado não como entidade cósmica ou sobrenatural, mas um aspecto da pequena e fictícia Derry. Em O Iluminado o protagonista não é Danny ou seu pai cachaceiro, mas o próprio hotel Overlock. E as remissões à obra de Shirley Jackson sempre foram constantes em King, assim como o fez em 'Salem, um de seu livros clássicos, leitura obrigatória a todos os fãs do autor macabro.

Certamente, essa ideia do mal reverberando no tempo e num dado local (casa, bairro, cidade etc.) não é recente, nem A Assombração na Casa da Colina foi o primeiro momento onde se tocou no assunto. Alan Moore, por exemplo, sempre procurou destrinchar o fenômeno em obras suas, como Do Inferno e A Voz do Fogo. E, confesso, tenho um certo fascínio por textos que abordam psicogeografia e temática correlata.

A Assombração da Casa da Colina é livro que se tornou raro no Brasil até sua republicação recente pela editora Suma. Exemplares em mau estado da finada editora Francisco Alves eram vendidos por até R$ 100,00. Por isso, só o li na versão digital "gratuita". Já 'Salem finalmente abandonou o título brazuca anterior de A Hora do Vampiro'Salem tem mais a ver com o título original Salem's Lot, curioso nome da cidade onde a trama se passa. A origem para a denominação da cidadela é explicada no romance. Assim, ponto para a Suma de Letras (selo da Objetiva que edita o velho Steve em nosso país). Jerusalem's Lot integra a geografia fictícia de King para sua amada região da Nova Inglaterra.

Conquanto goste mais do título nacional atual, A Hora do Vampiro não foi escolhido a esmo. Em mais de um momento da trama, ao se narrar o ritmo de vida da cidade, nos é dito que chegou "a hora do vampiro" às 19:00 horas. Aliás, são justamente nesses trechos sobre o cotidiano da cidade e seus peculiares moradores onde mais sentimos King por trás do romance. A graça em seus livros é que, além da trama principal e seus protagonistas, os povoamentos são eviscerados por meios de pequenas ações de vários cidadãos às vezes quase insignificantes à trama principal.
Nenhum organismo vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. A Casa da Colina, nada sã, erguia-se solitária em frente de suas colinas, agasalhando a escuridão em suas entranhas; existia há oitenta anos e provavelmente existiria por mais outros oitenta. Por dentro, as paredes continuavam eretas, os tijolos aderiam precisamente a seus vizinhos, os soalhos eram firmes e as portas se mantinham sensatamente fechadas; o silêncio cobria solidamente a madeira e a pedra da Casa da Colina, e o que por lá andasse, andava sozinho.
- Primeiro e último parágrafos do romance de Shirley Jackson, inspirador não apenas de 'Salem, mas de boa parte da obra de King.
O principal personagem da trama é a Casa Marsten, onde uma tragédia envolvendo assassinato seguido de suicídio abalou a cidade. Além disso, acredita-se que o antigo dono da casa - Hubert "Hubie" Marsten - seria um sanguinário mafioso adepto de rituais envolvendo evisceração de crianças. O escritor Ben Mears possui um fato sombrio em seu passado, em relação a este casarão. E, ao retornar duas décadas após a 'Salem para exorcizar o medo, descobre que dois estranho chegaram concomitantemente para habitar o imóvel, quando estranhos fenômenos passam a ocorrer. Ben acredita que a Casa Marsten não trouxe esses convidados à toa: é realmente como um vórtice, um imã atraindo inexoravelmente o mal. Num determinado momento, a colocação de deboche de Susan Norton para o professor Matt Burke ratifica este pensamento: "Desconfio que a teoria dele seja um velho clichê parapsicológico. Que seres humanos fabricam o mal assim como produzem muco, excremento e outras secreções. E que permanece no lugar. É como se a Casa Marsten tivesse se tornado uma pilha carregada de mal, uma bateria maligna". No decorrer da leitura, contudo, descobrimos um poucos mais da relação entre a mansão, seu antigo proprietário mafioso e os novos habitante.

O final do romance é meio aberto, mas fecha, em seu epílogo, um ciclo iniciado no prólogo. Como em quase todos os livros do Mestre, vidas são ceifadas bruscamente em poucas páginas e, ao final, o saldo sempre é duvidoso: parece que ninguém saiu realmente vencedor. Por se tratar de um romance mais antigo, ainda não havia a prática de "mini spoilers" que o autor costumou utilizar em obras ulteriores.

Uma curiosidade. A história por trás da Casa Marsten envolve um assassinato seguido por suicídio. Uma semana após ler o romance, meu colega de trabalho assassinou a namorada com um tiro no peito e, depois estourou a própria cabeça. Tragédias lamentáveis desse mundo cada vez mais maluco e sincronicidades da vida.

A tradução é de Thelma Médici Nóbrega. Segue o formato dos demais livros da Objetiva (Suma) para o autor: brochura com orelhas, papel bom, meio amarelado (o que não cansa a visão). São mais de 460 páginas de bom terror. Uma história onde os vampiros não brilham ao sol.


Abraços soturnos e até a próxima.