sábado, 28 de setembro de 2019

O Homem que Caiu na Terra, por Walter Tevis e Nicolas Roeg


Bebeu água? Não! 
Tá com sede? Tô! 
Olha, olha, olha, olha a água mineral

Walter Tevis publicou seis romances e, destes, três foram adaptados com sucesso para o cinema. A Cor do Dinheiro (1986), aliás, deu ao grande Paul Newman o Oscar de Melhor Ator e ajudou Tom Cruise a impulsionar sua carreira. Mas penso que seu trabalho mais cultuado, tanto na literatura quanto na ida à telona, é mesmo O Homem que Caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth). O filme (1976) tornou-se cultuado como um dos essenciais à ficção científica e por ser o trabalho de estréia de David Bowie num grande papel. E penso serem justos todos os elogios à produção, pois não deixa a desejar em momento algum, nem mesmo nas lacunas propositadamente deixadas pelo diretor Nicolas Roeg, em relação ao romance escrito.

O filme foi o mais fiel possível à obra escrita. O mote é simples e, hoje, pareceria batido. Um alienígena humanoide chega à terra e se torna multimilionário arrendando patentes de alta tecnologia. Seu objetivo é dispor de muito dinheiro para, em até cinco anos, estar com uma espaçonave construída e assim, retornar ao seu planeta. Logo, sua natureza alienígena, mesmo a contragosto, vai-se perdendo e ele sente que está se humanizando. Para piorar, torna-se alcoólatra e sente que está desenvolvendo problemas emocionais similares aos humanos, como paranoia e depressão. Para piorar, é descoberto pelo Governo americano e posto sob vigilância constante, sendo condenado a viver na Terra até o final de seus dias enquanto conta, igualmente, os últimos dias de seus conterrâneos, amigos e familiares que permaneceram no planeta primevo.

A escolha de Bowie para dar vida ao humanoide Thomas Jerome Newton não poderia ser melhor. Quando lemos o romance de Tevis (1963) o cantor se encaixa perfeitamente no que poderia vir à nossa mente. E essa relação de David Bowie com o ET possui prévia e pós com o filme. The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972, ou seja, de quatro anos antes do filme) - um dos melhores disco que conheço, ao lado de Pink Floyd's The Wall -, por exemplo, conta a história do alien que, na Terra, torna-se astro do rock, multimilionário, e, depois, conhece a bancarrota espiritual. Depois do filme, Bowie deu continuidade ao personagem de Thomas Newton em dois álbuns, inclusive utilizando imagens do cinema nas capas. Não seriam bem o Thomas de Tevis/Roeg, mas extensões dele. 

No início da trama, vemos Tommy (como sua "amiga" Betty Jo o chama) vendendo anéis de ouro em pequenos comércios para conseguir dinheiro. Após um tempo, procura o advogado Oliver Farnsworth com uma pasta cheia de grandes projetos óticos, químicos e eletrônicos para que lhe dê suporte jurídico. Em pouco tempo, seu nome torna-se conhecido mundialmente e ele passa a contar com a amizade de dois empregados: a governanta Jenny e o Engenheiro Nathan Bryce. Este sempre desconfiara da natureza alienígena do patrão e, no romance, acaba obtendo a prova definitiva devido a um raio X obtido clandestinamente. Algo que chama atenção no filme é como o alien gosta de água. Por viver numa terra seca, próxima do colapso, ele bebe água como um rito cerimonial. Ninguém ama água como aquele cara. Creio que ele tomaria até água da privada só para não vê-la descer para o esgoto.

No filme não temos muitas informações de seu planeta natal. Apenas vemos, às vezes, cenas rápidas do que seria sua família, esposa e filhos, minguando em terras devastadas pela seca, onde necessitariam de roupas especiais para reaproveitar fluidos corporais. No romance, Tommy nos fala a respeito deste planeta frio. Em eras atrás, costumavam explorar outros lugares. Num dado momento, chega a pensar que nossa crença em deuses celestes se deve, lá nos primórdios, a alguns antheanos quando estiveram por aqui em contato com nossos antepassados primitivos. Tais viagens se tornaram raras com o tempo diante da escassez de combustíveis. Seu planeta está moribundo, destituído de recursos naturais. Chega a nos dizer que passaram por várias guerras para que chegassem a isso. Antes, três espécies distintas que habitavam Anthea conviviam até em certa harmonia. Com o tempo, restara apenas uma delas e com menos de trezentos exemplares. E, aí, nos dá outra revelação ausente no filme: a espaçonave - ou balsa - construída por ele tem o intuito de levar combustível aos seus companheiros para que, na Terra, espalhem-se, ocupem postos de destaque na política, negócios e ciências e, assim, de forma discreta, orientem o mundo no caminho que eles acham melhor.

Também é interessante destacar que, no romance, o mundo encontra-se à beira de uma nova Grande Guerra. O próprio Thomas a estima em algo entre dez ou trinta anos, com grandes chances de devastação total. Crê ele que, junto com o remanescente antheano, poderia impedir isso. Até mesmo nosso país é citado neste imbróglio internacional: "Foi até à cozinha e preparou duas xícaras, usando as pílulas de café que era praticamente o máximo que você conseguia comprar naqueles tempos, já que o país tinha cortado relações com o Brasil.". Seria, enfim, uma década de '80 distópica, numa Guerra Fria mais morna do que realmente o foi.

Também se destacam as referências à literatura erudita, as quais, creio, se devem à formação de Walter Tevis e seu posto de professor de literatura na Universidade de Ohio durante mais de década. O trecho abaixo é interessante de se destacar para exemplificar como Thomas recorre à nossa cultura para expressar seus sentimentos, vez que fora treinado por vinte anos para poder vir à Terra e assimilou de tudo, desde programas banais domingueiros até alta cultura.
O carro os esperava com um chofer uniformizado. Quando estavam confortáveis dentro dele, Bryce perguntou: "Está gostando de Chicago?". Newton olhou para ele por um momento e respondeu: "Tinha me esquecido de toda essa gente". Com um sorriso fino, recitou Dante: "Não sabia que a morte tinha desistido de tantos". Bryce pensou: Se você é Dante, entre os condenados - e provavelmente o é -, então sou Virgílio.
Em resumo: o filme de Nicolas Roeg é tão bom quanto o livro de Walter Tevis, e tenta segui-lo à risca, dentro do possível. Recomendo tempo investido nessas obras. Além disso, a edição brasileira da Darkside é caprichada: tradução de Taissa Reis, capa dura, corte laranja, papel amarelado similar ao pólen, com letras generosas, bom espaçamento e margens não econômicas. O livro fora lançado por aqui, antes, em 1988, pela Editorial Caminho. Lembro que, antes da edição da Darkside, esta brochura era vendida a preços elevados em sebos. Hoje, percebo que alguns não conseguiram vendê-la e, agora, estão com encalhe. Depois as pessoas se perguntam porque sebos estão morrendo.

Enfim, é isso. Poderia escrever mais sobre este pequeno livro (224 páginas) e o excelente filme. Mas ficaria cansativo. Fico por aqui logo após recomendar a leitura da postagem Terror Elegante: Fome De Viver e Coração Satânico, onde também cito dois ótimos romances adaptados para igualmente ótimos filmes; e um deles com David Bowie. E, mais abaixo, aproveito para postar imagens de meu exemplar e também do David Bowie Está Aqui da finada Cosac & Naify. Embora se destine mais ao público fashionista (não é o meu caso), tenho mais por amor ao artista e pelo belo trabalho da editora.

Abraços extraterrenos e até a próxima.








6 comentários:

  1. Bowie é meu cantor preferido. Tenho ele tatuado no braço e sou apaixonada pela capacidade que teve de se reinventar na música. Esse filme é maravilhoso mas até hoje não consegui ler a obra, acredita? É muito bom saber que se ateve a história original, não estragando nada. Sua edição é maravilhosa, adorei a capa da Darkside. Tenho que admitir que já deixei de comprar livros em sebo pelos preços exorbitantes de exemplares extremamente gastos pelo tempo. É triste. De livros do Bowie, eu tenho apenas a sua biografia que ganhei de presente do meu pai há alguns anos.

    Abraço,
    Parágrafo Cult

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    1. Já vi várias tatuagens de Bowie justamemte sobre imagens deste filme. Cheguei a cogitar fazer uma há um tempo, mas em casa dizem q já estou bastante rabiscado. Acho q mesmo assim ainda farei.

      Admiro sua obra no geral, de músico a cantor, de ator e performático.

      Esse cara deixou um legado ao mundo!

      Abraços, Larissa.

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  2. Fabiano, sobre digitar em celular, sei bem como é. Tenho dedos grandes e é um saco.

    Penso que tudo relacionado a Philip K.Dick é superestimado. Creio que muitos de seus fãs às vezes exageram em avaliações apenas porque há o nome do autor na capa. Não li esta obra citada por você. Contudo, também pode ser que, DENTRO DO UNIVERSO construído pelo autor, seja um bom livro. Isolado, pode ficar meio sem graça. Vai-se saber...

    Vi Labirinto há anos por recomendação sua. É um filme bom, para mim. Mas apenas "bom".

    Abraços!!!

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  3. Muitas vezes o autor quis apenas isso mesmo: escrever uma história sem nada além de apenas contar uma história. Stephen King fala muito acerca disso, que às vezes uma narrativa é apenas para entreter, nada mais. Penso que um nicho de leitores é que começa a tentar encontrar pelo em ovo...

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  4. "The Rise and (...) Mars " - top essa relação do filme com a música

    "ele bebe água como um rito cerimonial" - logo estaremos assim na Terra

    "David Bowie Está Aqui" - esse tá uma nota, bela obra

    abs!

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    1. Realmente. Pesquisei rapidamente e vi preços salgados. Felizmente o comprei no ano de lançamento...
      Está uma nota. Mas duvido que venda.

      Abraços, Scant

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