sábado, 3 de outubro de 2020

O Homem do Beco Medonho [ novela de Fabiano Caldeira ]

 

Capa do exemplar no aplicativo gratuito Kindle.

"Que tipo de homem bate punheta e não goza? Muito estranho."
- Jefferson acerca de "Medonho"

Sempre gostei do trabalho de meu amigo Fabiano Caldeira enquanto cartunista. Sua tira As Gêmeas, para mim, é sua melhor criação. Há outros trabalhos. Mas As Gêmeas são as melhores. Também sou leitor de seu blogue Socializando há quase dez anos. Sinto saudades da versão anterior dele (a 1.0), extinto. Mas tudo muda, inclusive a maneira de blogar. E fiquei contente quando vi seu crescimento como escritor, com obras bem recebidas na plataforma self-publish da Amazon. Contudo, podia apenas ficar satisfeito por isso, mas não o lia. É que seu trabalho volta-se, sobretudo, ao público gay. Essencialmente, sua prosa é erótica (hot, ou, como prefiro, pornográfica) para homens que gostam de transar com outros homens. Assim, seu nicho é composto quase que totalmente por gays e mulheres heterossexuais (contumazes consumidoras de material onde impera o homossexualismo masculino, algo que Freud explica). Até que ele publicou duas obras voltadas ao leitor geral: O Homem do Beco Medonho e Rita & Orestes. Li o primeiro e adorei, valendo a pena recomendar aqui.

A história nos é apresentada por três narradores: a) o escritor, b) Jefferson e c) alguém conhecido apenas por Medonho. Essa forma narrativa é interessante porque nos permite analisar a parcialidade dos envolvidos. Não é como Dom Casmurro, onde acreditamos piamente na canalhice de Capitu quando tudo nos é repassado sob a ótica de Bentinho. A primeira vez que mantive contato com estrutura narrativa assim foi, quando guri (onze ou doze anos de idade, acho), li o maravilhoso Versões Sobre Um Fuzilamento de Roberto Drummond (mais conhecido por Hilda Furacão).

O mote é simples: numa noite vazia, Jefferson tem o pneu do carro furado e é auxiliado pelo estranho morador de um beco medonho. O residente sinistro (conhecido apenas por "Medonho"), o arrasta naquela mesma noite não apenas para o interior de seu muquifo, mas, igualmente, para dentro uma mal contada história envolvendo assassinato, mafiosos brazucas, amigos sacanas e uma Ferrari icônica.

De antemão, ressalto haver elementos homossexuais no romance O Homem do Beco Medonho. Mas isso não atrapalha a leitura para quem não curte piroca. Vi mais homossexualismo explícito em A Casa dos Budas Ditosos de João Ubaldo Ribeiro (romance) e em Lost Girls (graphic novel escrita por Alan Moore e ilustrada por sua esposa Melinda) do que nas poucas nuances salpicadas na prosa de Fabiano. Sua linguagem, coloquial, reproduz algo similar ao que encontro nas tramas de Rubens Fonseca e Ítalo Moriconi. Na verdade, penso que Fabiano Caldeira poderia até se soltar mais, sem amarras de linguagem. Havendo contexto, não há porque ser polido em prosa assim. Felizmente, sua contrição não foi absoluta e, em diversos momentos, me senti lendo algum texto de Rubens Fonseca, como no trecho abaixo:

Ele peidou. Um odor horrível. Cheguei a pensar que tivesse cagado na calça. Sua pele sebosa ficou cada vez mais úmida. Suava frio. Que merda de veado aquele que sequer oferecia resistência? Um covarde.

Sua escrita é fluida e nos oferece leitura dinâmica. O texto é bem amarrado e enxuto. Não me vi, em momento algum, lendo excesso destinado a encher linguiça. A linguagem e as ações dos personagens situam a trama em nossa época. Contudo, para reforçar essa palatabilidade  com o tempo presente, penso que o autor poderia ser mais explícito ao citar produtos e serviço por marcas comumente usuais. Em dados momentos, ele se refere a “aplicativos” para mensagens e transporte. Seria interessante mencionar diretamente "WhatsApp" e "Uber", ou outros. A literatura contemporânea não se perde em descrições de ambientes como a clássica. Mas não deixa escapar, por exemplo, a marca da cerveja que o protagonista entorna, o modelo e quantos cavalos seu automóvel possui e os ingredientes presentes em seu jantar. Assim, por exemplo, são escritores que vão de Stephen King a Jô Soares. O primeiro não perde a oportunidade de citar a marca do martelo que será utilizado num crime (v. IT, A Coisa); o segundo precisa explicar, mesmo que brevemente, como é feita a Salade Aïda servida de entrada no Expresso do Oriente (v. O Homem Que Matou Getúlio Vargas). Gostaria, então, que o autor tivesse me dado mais a respeito da Ferrari que, de certa forma, é quase personagem da trama, não apenas se referindo a mesma como “lendária”.

A sintonia com a realidade é o melhor da história. Trata-se de um conto com pé na vida real, nos deixando com a sensação de plausibilidade. Há ressonância emocional em tudo, a sensação de que tudo aquilo seria facilmente possível de ocorrer numa grande metrópole. Cito, por exemplo, a passagem abaixo, me fazendo recordar quando um conhecido contabilista local (bicha enrustida) foi assassinado esganado por um de seus jovens casos secretos, há pouco tempo:

O cara era um daqueles casadões enrustidos. O chefe de família que criou as filhas na maior mordomia, regadas a lições de moral e bons costumes, sendo que ele mesmo gosta de sair por aí e dar o cu ao primeiro que vê pela frente. (…) Apenas agradeci e disse um “se cuida” com todo meu coração, pois homens como ele, se não mudarem de atitude, acabam vitimados pelo próprio desejo.

Ou quando comenta o sensacionalismo midiático sobre mortes quando a vítima é homossexual. E isso também me recordou quando morei na cidade de Campina Grande e um conhecido travesti nosso foi esfaqueado dezenas de vezes, vindo a óbito. A imprensa local, incontinenti, hasteou a bandeira da homofobia, crime de ódio, com os homens brancos (havia gravações de câmeras de segurança das lojas próximas) - possivelmente heterossexuais burgueses e futuros eleitores de Bolsonaro - agredindo o pobre veado. Houve passeata nas ruas, pedindo justiça contra a intolerância. Mas, em menos de um mês, descobriram os culpados: traficantes. O travesti era avião e devia grana ao patrão. Simples assim. Curiosamente, após isso, não houve mais passeatas nem notícia. Na trama, Ron, amigo do protagonista/narrador Jefferson, assim expõe a situação:

Quando encontram bichas mortas, assim, se não houver insinuação de que foi crime homofóbico, ninguém liga. Ninguém quer saber. Tem que falar, sim, que foi homofobia. Para o povo se sensibilizar.

Em resumo: é um bom livro. Você vai se divertir bastante lendo esta prosa curta (novela, conto longo?). Não há pretensão alguma a não ser entreter com uma trama simples e empolgante. Me mantive curioso quando, no meio da narrativa, outros contornos surgiram e a conclusão deixou ganchos para sequência. 

Quando guri, era comum ver romances de banca de revistas: brochuras em medidas diminutas, com preços relativamente acessíveis, títulos chamativos, capas bregas e que vendiam a rodo. Eu, guri, não era leitor daquelas publicações. Mas as via regularmente em residências variadas. As pessoas podiam não ser leitoras contumazes de clássicos da Literatura, mas se entretinham com ficções descompromissadas. Muitas vezes, este é o objetivo de um escritor: confeccionar história para mero entretenimento. E, olha… não é fácil escrever algo que mantenha o interesse do leitor por quase cem páginas. Fabiano Caldeira conseguiu atingir esse objetivo.

Se você gosta de narrativas despretensiosas e contemporâneas, a obra é ótima sugestão. E o melhor: esporadicamente, poderá acessá-la gratuitamente nas promoções da Amazon. Nesta próxima semana, dia 05, estará disponível, novamente, de graça. A leitura no aplicativo Kindle (celular ou tablet) é agradável. Se você possuir dispositivo Kindle, melhor ainda. Optando pela compra, custa apenas R$ 2,99, mais do que justo por 89 páginas de boa leitura.

Abraços medonhos e até a próxima.

Um comentário:

  1. Parabéns Fabiano, escrever um livro é uma missão hercúlea! Fico ensaiando para fazer um texto mas não saio daquele eterno escreve/reescreve - a história patina e não toma forma. Queria ter uma fração da capacidade cerebral de um José Mauro de Vasconcelos que já tinha o livro pronto na cabeça quando começava a escrever.

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