sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Tô rico e não sabia [ Assombros cotidianos ]

Meu rico dinheirinho.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
- Livros, Caetano Veloso

No antigo blogue, eu expressava a ideia de que, com a digitalização da informação e seu acesso de forma cada vez mais fácil (novos dispositivos mais baratos e eficientes, banda larga etc.), os livros precisariam de maiores cuidados quanto à forma. O livro, enquanto objeto tátil, necessitaria se tornar mais atraente/atrativo. Se é para comprar brochura vagabunda pelos olhos da cara, melhor ler de graça em tablet, ereader ou até mesmo celular. E, no Brasil, a Cosac Naify foi responsável por esse salto de qualidade em nossas publicações. A editora capitaneada por Charles Cosac foi, de certa forma, entidade filantrópica em terras tupiniquins. Seus donos nunca visaram ao lucro. Queriam apenas editar bons livros com toda a frescura do mundo. Durante dezenove anos, venderam livros de excelente qualidade gráfica (alguns, com arroubos quase fetichistas) abaixo do preço de custo.

Sempre me interessei pelo mercado livreiro e pelo livro não apenas enquanto veículo de conhecimento, mas, igualmente, tátil. De certa forma, o livro sempre pode ser produto de arte destinado a invólucro de... arte. Hoje, diante de questões relevantes sobre espaço físico, economia de grana e as safadezas das editores conosco, leitores, eu apoio bastante o meio eletrônico, especialmente o gratuito. Dá para ler de graça e com qualidade em diversos "gadgets" (para usar a palavrinha mais apropriada a este novo mundo). Então, leiamos. E, claro, reservemos o meio físico a algumas obras especiais e, claro, que nos deem capricho gráfico. Repito: se a obra for figurinha fácil e estiver impressa em brochura descartável fubenta, a preço elevado, melhor "puxar da internet", como diz o matuto.

Esses dias, eu comentaria aqui sobre o romance Pinóquio de Carlo Collodi. A edição possui o apuro gráfico da finada Cosac Naify: capa dura com gravações em dourado sobre hot stamping, ilustrações de Alex Cerveny, miolo em papel GardaPat Kiara 115 g/m² (papel "dubom", com elevada gramatura), impresso na lusitana Nortprint. Três mil exemplares tiveram luva em material rígido.

Sobre as ilustração, destaco a técnica cliché verre empregada pelo artista. É algo trabalhoso, onde o desenho é feito por remoção de fuligem aplicada sobre placa de vidro. Chamuscam a placa com vela e, após, se vai desenhando sobre ela a seco. Como resultado obtemos o "negativo" do desenho, para impressão posterior mediante contato fotográfico. Amiúdes: coisa fina e cheia de frescurinhas. Não me recordo por quanto comprei, mas foi alguma ninharia de saldão. E, ao escrever sobre o romance, efetuei breve pesquisa sobre a disponibilidade do texto integral (nada dessas babaquices adaptadas). Qual minha surpresa quando vi livreiros da vitrine da Amazon vendendo a mesma edição por até R$ 999,90.

Como diz o comunista-coxinha Huck: loucura, loucura, loucura!

Daí, resolvi verificar outras obras da Cosac Naify de minha estante. Outro assombro, conforme podem constatar na imagem acima. Outono da Idade Média por até R$ 2.390,00 e os contos de Tostói por oitocentas pilas. Sei que existem os colecionadores (bibliófilos e bibliômanos). Mas, convenhamos, isso tudo parece mais devaneio do mercado que já se mostra, aliás, em frangalhos. Cada vez mais, penso que sebos e livrarias pedem para sucumbir assim como a indústria fonográfica, que nos roubava sem vergonha alguma na cara, com CDs que custavam um salário mínimo, logo após a conversão da moeda de URV para Real.

Duvido bastante que esses livros sejam vendidos por tais valores. Não consigo crer nisso. Na Estante Virtual, topei com obras de meu interesse ofertadas por valores absurdos. Nos dois casos, entrei em contato com os vendedores e fiz proposta, sem êxito. Passados anos, ainda vejo as mesmas obras à venda, mas agora com preços reduzidos. Só que, agora, não tenho mais interesse em tê-las, mesmo com valores dentro da realidade. Destaco isso porque muitos podem alegar que há interessados. E, francamente, ainda mais considerando o período difícil pelo qual passamos, duvido mesmo.

Insisto apenas nisso: o mercado livreiro, como conhecemos, está com os dias contados. Isso vale inclusive para obras eletrônicas de grandes editoras, que insistem em cobrar caro por elas. Em diversos momentos, topei com livros digitais pelo mesmo valor que os impressos. Por maior que seja a ginástica mental empreendida, isso não se justifica na maioria das hipóteses.

Acredito que, seguindo essa regra dos valores acima, devo possuir uma Toyota SW4 2020 em minhas estantes e, até hoje, não sabia.

Abraços inflacionados e até a próxima.


4 comentários:

  1. boa lembrança do mercado de cds - hoje nao valem quase nada
    gosto de livros fisicos, mas nao pagaria tanto em um item so
    o mercado livreiro esta morto. so nao sabe ainda

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    1. "o mercado livreiro esta morto"
      E fim de papo. Simples assim.

      Abraços!!!

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  2. Concordo com tudo o que disse. Hoje existe uma cultura dos livros caros! Nem me importo tanto em pagar um pouco mais caro por um livro bom, que possa ficar na estante, que tenha um "algo mais" tátil, que somente aqueles que apreciam livros entendem. É como o cheiro dos livros novos, droga potente para aqueles que já se viciaram.
    Antigamente costumava comprar livros adoidado, pelo simples prazer de tê-los. Quando gostava de algo ia lá e tchabum, gastava as verdinhas no cartonado. Tinha um fetiche por ter os livros, uma ideia fixa de montar uma biblioteca colossal, como as que via nas aulas do grande Olavão e nas fotos do grande Umberto Eco. Acho que foi num livro do Taleb, em que ele diz que o próprio Eco jamais leu todos os livros de sua biblioteca, pois o mais importante era a antibiblioteca, aquilo que você sabia que não sabia, mas sabia que existia e onde estava.
    No fim, acabei comprando muita porcaria. Livros que eu li uma vez e não queria mais ver a cor do infeliz. Livros que nem terminei pois achei uma bela porcaria (mesmo as "autoridades" no assunto dizendo que eram bons). Por fim, tentei me desfazer de alguns pelo mercado livre e descobri algo que já parecia bem claro, ninguém lê (ou muito pouca gente, na verdade) e quem lê não parece gostar de comprar usados (fetiche do livro novo).

    Por isso, hoje, sempre antes de comprar um livro, viro do avesso a internet atrás de uma cópia que possa ler para saber se vale a pena meu suado dinheirinho. Conheci o grande LibGenesis, onde dá pra achar livros a beça. Os clássicos quase todos estão no Project Gutemberg. Se não tem em português, vai em inglês ou espanhol, talvez dê pra arriscar um francês, vá lá.
    Mas gastar dinheiro em livros físicos, somente em poucos. O sonho da biblioteca de Eco se diluiu na minha realidade. Acho que só deu certo pra ele pois foi afortunado de saber escrever muito bem e ser professor universitário, ou seja, ganhou muito dinheiro. O que é uma biblioteca e um cômodo gigantesco para um milionário como ele. Pra mim é só trabalho de limpar pó e lembrar o tanto de dinheiro gasto.

    Vale ressaltar também que poucos são os livros bons hoje em dia. Muita porcaria circula por aí nas prateleiras de livrarias. Muitos sonhos vendidos para gente sonhadora, muita bibliografia de gente viva, muito mais do mesmo escrito de outra forma, e muitas histórias sem emoção e sem vida. É difícil saber se algo é bom somente pela capa. Não se fazem mais Ulisses como antigamente. O mercado livreiro está morto da mesma forma que muitas das coisas que os apaixonados gostam estão morrendo (música, arte, teatro, cultura, etc). Talvez o mundo esteja morrendo pouco a pouco, pois tudo que começa tem que terminar em algum momento.

    Abraços do Matheus.
    Mais um grande post Neófito =D.

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    1. Olá, Matheus.

      Belo relato acerca de sua experiência de leitor/consumidor e um quase ex-bibliômano.

      Atualmente, só consigo manter tudo o que possuo de papel (livros e gibis) num mesmo ambiente porque doei bastante coisa. Atualmente, não doaria mais, pois a biblioteca está sob controle e, quem quiser ler e não possuir grana, possui mil opções na palma da mão. Logo, não preciso fazer caridade aos menos desafortunados. Contudo, venderia tudo sem dó algum, algo impensável no passado. Foi um passo de cada vez e te digo: não preciso mais desse apego a ter papel impresso. Não nego, claro, os prazeres que o objeto proporciona. Só que, realmente, desencanei. E me sinto livre com isso.

      Salvo engano, Eco mantinha sua biblioteca num edifício. Além disso, também possuía muita coisa numa casa de campo. Era uma loucura. Recordo quando o mesmo falou que jamais encontraria um livro, ali, se alguém o retirasse do local. Mas, como vc bem disse, Eco é outro nível. Estamos bem aquém dele enquanto acadêmico e, aliás, o mesmo vinha cedendo ao livro eletrônico nos últimos anos, sendo visto com um Kindle (ou outro, não recordo) por aí. Até Eco trocou o tabaco por cigarro eletrônico e o papel por um ecrã. Tudo muda...

      Abraços e fico feliz que tenha curtido.

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