terça-feira, 23 de agosto de 2022

Abelardo, o cego

 

Sexo no iê
Oxente, oh! Shit
Cego Aderaldo olhando pra mim
Moonwalkman

A Prosa Impúrpura do Caicó - Chico César

Como falei anteriormente, ter sido Oficial de Justiça (justiça estadual), enquanto estava na faculdade de Direito, me rendia situações memoráveis, tão bizarras quanto à lambida no sangue por Ademir, o corno artesão. Uma delas foi com Abelardo, o cego sinistro.

Tratava-se de um inventário enrolado e sem fim. Eu precisava encontrar a inventariante que sumiu do mapa após consumir todo o espólio: a mulher tinha torrado a grana do defunto e os irmãos estavam - obviamente - incomodados com a situação. Vamos chamá-la de Maria. De posse de sua possível localização, fui bater à porta de uma casinha até bem situada próximo ao centro da cidade. Havia uma murada baixinha (meio muro) com portão de ferro aberto. Entrei e percebi que a porta encontrava-se entreaberta, com fresta generosa. Bati, bati e nada. Então fiz como se faz no interior deste Brasil de Deus-Pai: fui penetrando e falando alto "Oh de casa, tô entrando". Casa vazia, sem nenhum móvel - exceto por a cadeira de madeira no final da sala, onde o velho estava sentado, apoiado na bengala.

- Boa tarde, meu senhor. Mora aqui?

- Sim, senhor. Sou o Abelardo.

- Conhece Maria? Ela está?

- Conheço, sim, mas ela não se encontra. Me deixou aqui, foi embora e não vai voltar.

Como ele olhava pro nada, percebi ser cego. "O senhor é cego, seu Abelardo?". "Sou, sim". E ainda continuou falando algumas histórias estranhas sobre gostar de ficar ali sozinho e que qualquer coisa falaria depois com Maria. Como o velhote não estava em cativeiro (a porta encontrava-se destrancada), aparentava bons tratos (limpo, roupinhas decentes etc.), apenas agradeci a cordialidade e fui saindo de fininho sem lhe dar as costas.

Suspeito que Abelardo, o cego, esteja lá até hoje, sentando na mesma cadeira de madeira, com ambas as mãos apoiadas na bengala, fitando o nada com seus olhos opacos.

Abraços verídicos e até a próxima.

8 comentários:

  1. abelardo é um agente na matrix e guarda uma brecha para o mundo real (ela fica nos fundos da casa)
    mais um pouco e vc teria que lutar kung fu

    abs!

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    1. Ele me fulminaria com o poder do olhar, ainda que cego! Abraços

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Cara, que história!! Abelardo me lembra um tio da minha mãe que ficava boa parte do tempo, depois de velho, numa rede fumando. Ele também era cego. Morava com seus sobrinhos, mas nenhum cuidava dele, deixando o velhinho sozinho boa parte do dia na casinha antiga. Quando o visitava na casinha velha do sertão a rede estava sempre cheirando a mijo e fumo, mas acho que ele não se importava, já que o olfato devia estar deteriorado pela idade. Morreu em silêncio nessa rede aos 107 anos. Provavelmente, Abelardo tenha tido uma sina parecida.

    Abs!!

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    1. "Morreu em silêncio nessa rede aos 107 anos"
      Que Deus tenha piedade de minha dor e não me deixe chegar aos 107 anos de idade! Que suplício. E ainda por cima cego. Já não bastam as dores, a incontinência urinária, o pau molenga e a impossibilidade de comer. Ainda por cima cego!!!
      Prefiro dar um tiro na cabeça antes disso.

      Abraços!

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    2. acho que uma ex-namorada me contou uma vez q o avô (ou bisavo, sei lá) dela se achando velho demais saiu de casa, se embrenhou numa floresta e nunca mais foi visto

      quase uma versão nacional do dia do arremesso da família dinossauro, hehe

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    3. O dia do arremesso seria belo e moral: serviria para todos os velhos pilantras. Ondo moro, é comum que pessoas se percam na mata e morram de fome e sede, em eapecial doentes mentais. Abç

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