quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Mater Morbi e a doença em Dylan Dog



Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
O pulso ainda pulsa
(O Pulso, Arnaldo Antunes)


Como falei de Dylan Dog recentemente, achei interessante, agora, escrever esta nova postagem sobre o investigador do pesadelo. Praticamente quase tudo o que li deste magnífico título foi digitalizado, pois nunca tivemos uma publicação regular contínua no Brasil e quem possui interesse pelas edições precisa garimpar, em sebos, volumes mal conservados e a preços absurdos. Felizmente, a Lorentz editou três números no ano passado e isso acabou despertando o interesse da Mythos em retomar o fio da meada. O problema é que, assim, a Mythos adquiriu os direitos de publicação e já está fazendo lambança com seus álbuns (de luxo e normais) a valores mais salgados. A proposta da Lorentz foi interessante. Basicamente, parece uma editora que surgiu no intuito de editar Dylan Dog, inicialmente com três volumes selecionados para comemorar o trintenário do personagem já "cult" da Sergio Bonelli Editore.

Os títulos lançados pela pequena empreitada de Santa Maria no Rio Grande do Sul foram, na sequência: Manchas Solares, Retorno ao Crepúsculo e Mater Morbi. E é sobre esta última que quero falar: uma excelente história de terror e drama humano realizada pela dupla Recchioni e Carnevale.

O mote é simples: Dylan Dog está doente, os médicos não sabem bem o diagnóstico e, em estado de consumpção, ele adentra nos domínios da Mater Morbi, a mãe de todas as doenças. E, em um dado momento, ele encontra a personificação da doença enquanto entidade: uma exuberante mulher meio gótica com trajes de dominatrix e cicatrizes pelo corpo pálido. Durante a jornada de DyD, também nos encantamos pelo garoto Vincent Grey, o qual de tanto sofrer nas garras da doença - praticamente crescendo em hospitais - desenvolveu um sistema filosófico próprio acerca de vida, morte e resignação. E a primeira lição que DyD recebe do garoto é quando ele desperta sendo chamado por outro nome. Então Vincent lhe explica tudo: "A identidade é a primeira coisa que ela tira... depois a dignidade e a própria vida". E depois começam as próprias introspecções do detetive quanto à doença:

O hospital é o lugar onde se sente mais só no mundo. Não conta quanta gente possa vir fazer companhia e dar apoio... A distância entre sãos e doente é um espaço infinito que nem o amor pode preencher. A doença tira o doente da convivência humana. E, por mais que ele seja amado por amigos e parentes, na parte mais ancestral do cérebro deles sempre haverá um homem das cavernas ansioso para se afastar do animal infectado. E, aos olhos de quem está doente, os sãos sempre são incompletos porque incapazes de compreender as suas necessidades, porque ignaros do seu sofrimento e porque culpados de andar com as próprias pernas. O doente é um vampiro sedento de vida, e pouco importa quantas lágrimas sejam vertidas por ele... Nunca serão suficientes para aplacar a sua sede. A doença não celebra nenhuma comunhão. Os leitos de um quarto de hospital são como as câmaras de combustão de um revólver, em que os pacientes são os projéteis e a cura é o objetivo. O que conta é atingir o alvo pessoalmente, porque não há recompensa alguma no sucesso dos outros. Ninguém fica triste por deixar o hospital. E aquele leve senso de desprazer pelos companheiros de desventura deixados para trás vai se derreter como neve ao sol, ao se recuperar a liberdade.
Então Dylan encontra finalmente a Mater Morbi e sua visão se expande quanto ao domínio desta quase deidade sobre a vida: ninguém escapa de suas garras; os poucos que se curam conseguem por ação da própria sádica: ela precisa que alguns se curem para que a humanidade continue sendo submetida a terapias e a sofrimentos para, assim, alimentarem o gosto dela pelo sofrimento, pelo definhamento e pela angústia que só a doença nos concede. Toda doença é absoluta e apenas em alguns casos possui uma ilusão de cura.

Já próximo ao desfecho, DyD adentra no universo da Doença, convicto de que nunca se ganha ao lutar contra o próprio corpo. E aí penetra na solidão da tarada gótica, confrontando-a com sua própria solidão. Ela não apenas se alimenta da consumpção; ela precisa estender o dano ao máximo porque, com a morte, saímos de seus domínios e ela retorna à solidão absoluta. Ninguém gosta da Doença; ninguém a deseja, por isso ela precisa nos acorrentar. O ser humano é complexo. Alguns idolatram a Morte e até mesmo se entregam voluntariamente a ela. Aliás, morte é libertação - tema inclusive acerca do qual discorri aqui. Outros amam até a dor, desde os pervertidos mais moderados que derretem parafina nos mamilos até os inexplicáveis amantes de ballbusting. Há tomos de poemas sobre a morte e a guerra. Homens preferem morrer em campos de batalha na ponta da baioneta ao definhamento pelo câncer. Quantos poemas você conhecer sobre a doença, em sua homenagem? No momento, me vem à cabeça apenas O Pulso de Arnaldo Antunes.

Como as histórias do título dificilmente se estendem além das cem páginas, o final nos pega de surpresa e pensamos que "tudo bem, acabou mais ou menos". Só que não. A última página nos remete a tudo novamente, como num ciclo de paixão macabra. DyD, pegador inveterado, flertou até com a Doença e a levou para a cama. E isso terá consequências.

É um ótimo gibi. Pena mesmo a editora gaúcha ter perdido os direitos de publicação e, agora, estarmos nas mãos da Mythos que, aparentemente, não está sabendo como abraçar uma criação tão bacana (novamente!). Contudo, torço para que ela obtenha sucesso.

Fico por aqui, meus caros. Saúde!











6 comentários:

  1. sobre o tema ainda é possível lembrar de "A Morte do Capitão Marvel".

    As introspecções do detetive são impressionantes.

    para ballbusting tem que ter muito culhão...

    abç!

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    1. Nunca li. Mas vou correr atrás.
      Boa filosofia sobre bagos. Rs rs
      Abraços, meu Grande!

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  2. Realmente, o único ponto negativo do Dylan Dog da Lorentz foi a distribuição, foi muito difícil de encontrar.No mais, as edições da Lorentz são muito melhores que as da Mythos, e também muito mais baratas.Infelizmente para os fãs acho que a publicação será cancelada devido ao trabalho desequilibrado na minha opinião da Mythos na escolha das histórias, e também no preço das edições do investigador do pesadelo.

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    1. Tb sou cético quanto à continuação pela Mythos. Contudo, torço para que eu esteja errado e que o projeto, de alguma forma, deslanche. Quanto ao trabalho da Lorentz, até a capa tem uma gramatura muito superior às das edições Mythos. E isso não é frescura, claro. Uma capa mais resistente sempre é mais interessante ao colecionador, que pretender guardar aquela edição na estante talvez até o final de sua vida, bem como relê-la ou emprestá-la.
      Abç!

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  3. Conheci Dylan Dog com a Mater Morbi da editora Lorentz. maravilhosa HQ. Agora vou correr atrás do Alvar Mayor que a Lorentz lançou a poucos meses com os desenhos do espetacular Breccia.

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    1. Não sabia desse lançamento. Obg por avisar. Naturalmente, adoro Breccia.

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