quinta-feira, 11 de julho de 2024

O coração amargo de Stephan Crane

Imagens geradas por inteligência artificial

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e o comia…
Disse-lhe: “É bom, amigo?”
“É amargo – respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.”

Eu desconhecia o poema acima e seu autor, até encontrá-lo na primeira página do miolo da revista Calafrio n.º 01, lançada em 1981. Foi um gibi sempre presente em minha infância, pois era um dos títulos esporadicamente adquiridos pelo meu irmão, depois, li e reli todos os números em scans. Atualmente, o selo Ink&Blood Comics publica o título, mas ainda não tive nenhum exemplar em mãos para avaliar. Enfim: lá no início da Calafrio encontra-se este poema obscuro. Pelo que pesquisei, seu advento à luz em língua portuguesa se deve, massivamente, ao livro As Magias (1987) do lusitano Herberto Helder. Mas é curioso como, seis anos antes, o editor e quadrinista Rodolfo Zalla já epigrafava seu novo título de terror com esses versos tão significativos.

Há alguns anos esse poema me serve para reflexão em momentos sombrios, quando estou preenchido por sentimentos malignos poderosos e sou assediado por entidades obsessoras que, em algum momento de deslize, podem se apoderar integralmente de mim. A criatura nua e brutal pode ser qualquer um de nós, em episódios de tristeza, amargura ou desespero. E o tempo me ensinou que a melhor forma de bater de frente com a amargura é saboreando-a até amaciar o paladar. É como ter contato com micróbios na infância para fortalecer o sistema imunológico ou praticar mitridização, ingerindo doses quase homeopáticas de substâncias letais. Essencialmente: o que não mata, fortalece.

Certamente, alguns creem que devemos buscar a luz para afastar as sombras. E também acredito nisso. Só que nem sempre as luzes são atingíveis. Há problemas para os quais não existem resoluções; e resiliência (palavrinha tão na moda) é a solução, nem que seja abraçando - ou até mesmo degustando - a amargura. Não importa o caminho, desde que você consiga sobreviver em relativa paz. Aliás, nas histórias dos Santos (homens que atingiram níveis mais elevados de existência) nunca houve caminhos de pétalas de rosas, ladrilhos dourados e luz do sol amena: mas muito percalço e sofrimento ao ponto da dor tornar-se lugar-comum. É como tatuar o corpo: só dói nas primeiras vezes. Não há como não recordar o primeiro verso do soneto de Pena Filho: "O quanto perco em luz conquisto em sombra".

Abraços amargurados e até a próxima.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

Low Roar


I took the easy way out
I took the easy way out
I took the easy way out

Quando não possuímos mais interesse em tentar conhecer coisas novas, corremos o risco, certamente, de deixar passar em branco algo bom. Mesmo assim, não mantenho mais ânimo nem tempo para viver chafurdando no lamaçal em busca de pérolas. Deixo possíveis pérolas aos porcos. Mas, ainda com esta postura, aceito de bom grado realizações culturais de alta qualidade que me chegam aleatoriamente. Foi assim, por exemplo, com os cinco álbuns maravilhosos de Low Roar, banda islandesa capitaneada pelo finado Ryan Karazija - norte-americano que encontrou grande projeção entre os anos de 2011 a 2022, até a morte levá-lo prematuramente, por pneumonia, aos 40 anos de idade.

Foi Hideo Kojima quem me apresentou a banda. Acho que a maior parte dos fãs conheceram essas canções graças ao jogo eletrônico Death Stranding. Como mexeu comigo conduzir o entregador Sam Bridges, dentro de terrenos quase intrafegáveis, ao som da voz e dos arranjos melancólicos de Low Roar. Eu diria, aliás, não apenas "melancólicos", mas quase suicidas, como fica explícito na faixa Easy Way Out, onde é dito apenas o óbvio - mas que ainda causa arrepio na maioria das pessoas - que a morte é sempre a saída mais rápida e fácil para os problemas deste mundo imundo onde vivemos. Às vezes, aliás, acredito piamente que todos nós já morremos e que este lugar maldito é o purgatório, onde deuses mesquinhos e filhos da puta estão cotidianamente testando nossa paciência.

Quando puderem, confiram os álbuns de Low Roar. Realmente valem a pena e trazem canções que me ajudam a relaxar sempre. Abaixo, colo um trecho de Death Stranding com Sam Bridges sofrendo para fazer seus deliverys, entre assaltantes e entidades sinistras, enquanto ouve um som bacana. No trecho específico, ele carrega o corpo da própria mãe - que acabara de falecer -, para o local específico onde defuntos frescos devem ser cremados, sob o grave risco de obliteração no entorno, naquele mundo peculiar concebido por Kojima, onde quem desencarna causa graves problemas aos vivos.

Abraços em "low roar" e até a próxima.