Acima, parte da Avenida Rio Branco, onde eu caminhava todos os dias ao retornar da escola, durante anos a fio. Nela, se encontravam as duas principais bancas de revistas da cidade, abarrotadas de gibis, revistas e muitos livros, especialmente de best seller (Paulo Coelho, Sidney Sheldon e John Grisham). Nos cantos da imagem dá para ver a traseira de ambas, funcionando ainda hoje. Mudaram bastante, claro, dedicando-se à venda de produtos vagabundos para tabacaria (seda, carvão, essências, Gudang Garam e Djarum Black etc.). Também há acessórios para telefonia celular e um monte de tranqueiras. Afinal, revista não vende muito atualmente. O mundo mudou.
Recordo como era gostoso sair da escola com dinheiro no bolso (passando fome sem lanchar por alguns dias) para comprar algum formatinho da Abril. Aquela época era boa para o leitor imberbe? Não. Formatinhos impressos em papel jornal, cheios de cortes e mal editados, custavam caro. As editoras nunca estiveram nem aí para nós, mesmo quando a Globo e a Abril bancavam todas as suas despesas editoriais apenas com gibizinhos. E a coisa não mudou nada, desde então. Benditos sejam a internet em banda larga, scans e tablets.
Após um imbróglio judicial envolvendo Miracleman - plágio de Capitão Marvel numa época onde tudo se plagiava - a família de seu criador Mick Anglo chegou a passar necessidades financeiras sérias e Alan Moore se manifestou a respeito, destilando ainda mais seu ódio contra as corporações de quadrinhos. Resolvida a querela, a Marvel finalmente pode editar o título, sob o nome definitivo "Miracleman". Todos aguardavam por isso, especialmente eu, apaixonado que sou pelas fases Alan Moore e Neil Gaiman. Então o que a Panini fez em terras brasilis? No auge dos encadernados, optou por formato canoa com grampos, em 16 números. Assim, o primeiro número teve capa variante, com a opção de uma metalizada custando R$ 13,90. Depois, o preço foi de R$ 7,50 a R$ 7,90. Não vou olhar preço a preço de cada número, mas daria uma média de R$ 129,00 toda a coleção, à época, para quem teve paciência de comprar em pedações, interrompendo a leitura com aquele continua na próxima edição quando poderia ter tudo isso num baita encadernado caprichado ou em dois, a preços similares. Sem contar que a versão HC é mais fácil de guardar do que várias revistinhas avulsas e mantem o estado geral da publicação mais conservado, mesmo com bastante manuseio, do que revistas fininhas grampeadas de capa mole sem orelhas.
Agora, seis anos depois (e olha que temos inflação vista a olhos nus e sentida na conta bancária que se esvazia fácil), a editora lança o material em encadernados. O primeiro está à venda por R$ 80,00. Quando vi aquele formato canoa à venda, pensei logo que seria para pegar trouxa. Pessoas, na ânsia de ler este gibi incrível, aceitariam tudo. São como Manuel Bandeira em sua ânsia pela Estrela da Manhã: "Digam que sou um homem sem orgulho / Um homem que aceita tudo / Que me importa?". Já conhecia esse "Shazam" de Anglo há alguns anos, devido a scans. Se a história tivesse saído em encadernados, teria adquirido. Repito: é um gibi notável.
Quando escrevi Eastrail 177 Trilogy e o Übermensch possível, resumi um pouco da genialidade de Moore ao aplicar seus princípios alquímicos (solve et coagula) neste personagem bobinho conhecido por Miracleman. Seguem alguns trechos:
"Vede; eu anuncio-vos o Super-homem: "É ele esse raio! É ele esse delírio!"
De Assim falou Zaratustra, por Friedrich Nietzsche
Em 1982, Alan Moore nos contou uma grande história de super-heróis. Nela, Micky Moran - homem de meia idade fora de forma que faz bico de repórter para sobreviver - descobre ser Miracleman, líder do time de "supers" cujas aventuras passadas ninguém recorda. Suas aventuras envolviam o que há de mais ingênuo no gênero. Para começar, recebeu seus poderes de um astrofísico que se tornou deidade e lhe deu a "palavra mágica" para quando precisasse salvar o dia. Não era Shazam, mas sim Kimota (atomik). Ele e seus amigos - incluídos aí Kid Miracleman e Miraclewoman (!) - viviam em luta constante com o maquiavélico Gargunza, gênio científico do mal. Para variar, ninguém se machucava realmente, todos contavam piadinhas em momentos de tensão e, no "número seguinte", o vilão retornava para encher o saco.
Mas como Micky Moran viveu tudo isso e ninguém se recordava da existência de superseres? Simples, as maravilhas existiam apenas em HQs infantis e ele foi cobaia num longo experimento, onde viveu quase oito anos em sono constante, sendo alimentado com aventuras pueris retiradas de gibis. Só que, um dia, ao se recordar de tudo, despertar na plenitude de seus poderes e buscar sua origem, os super-heróis e os megas vilões estarão no mundo real. Entretanto, as histórias não serão mais tão bobas: estupros (masculino e feminino), pedaços de corpos caindo dos céus, orgias celestiais e totalitarismo estarão presentes. E até mesmo suicídio do alter ego de Miracleman, numa das passagens que considero a mais tocante dos quadrinhos. Num dado momento, Micky Moran quer morrer: perdeu esposa e filha e se vê como inútil. Então, sobe uma montanha, retira as roupas e deixa um bilhete. Pronuncia a palavra Kimota e torna-se Miracleman. Este lê seu epitáfio e, desde então, nunca mais voltará ao corpo de Moran. Na mitologia criada por Alan Moore, a "transformação" se dá pela troca de corpos clonados, quando pronunciada a palavra-chave. Mike perecerá no limbo do infra-espaço, para sempre. Seria algo como Clark Kent se matar e deixar apenas Superman vivo.
Acredito que não comprarei este gibi porque li e reli todas as fases Moore/Gaiman para o personagem. São obras brilhantes. Quem tenta encontrar pontos negativos nessa "desconstrução" (palavrinha banal, hoje em dia) narrativa possui mau gosto, quer chamar atenção ou apenas não leu direito, precisando empreender releitura. Além de evitar comprar livros e HQs por diversos motivos esmiuçados neste blogue, a nova safadeza editorial vem aí: aparentemente, este primeiro volume contará com quase 1/3 de extras. Sim, aquele monte de bobagem impressa para encher linguiça. O caso d'A Liga Extraordinária Volume I (Panini, 2010) ainda é emblemático, onde mais da metade do livro contou com extras (aproximadamente 200 páginas de material inútil). E Punk Rock Jesus (2018), também da Panini, com 1/3 de extras? Em resumo: a editora não se contentou em lançar Miracleman no formato canoa para ganhar mais, depois relançando tudo em encadernado. Neste, ainda encheu de extras para inviabilizar um volume único.
Como grande fã do ermitão pentelho, gostaria de ter Miracleman em encadernados. Entretanto, dispenso. Dinheiro está difícil, a inflação anda galopante - devido à pandemia de coronavírus e milhões impressos (além da dívida rolada) para custear auxílios e roubalheiras em Estados e Municípios. Não posso me dar ao luxo de comprar "extras" caros quando poderia ter toda a saga num volume único relativamente caprichado, ainda que com capa cartão, a preço justo.
No momento, todo o mercado editorial nacional é, para mim, decepcionante. Obras em domínio público impressas em brochuras vagabundas caríssimas, gibis caros com 1/3 de extras para inflar ganhos e impedir a publicação de algo em volume único, editoras e livraria chorando as pitangas enquanto seus proprietários ostentam vidas de luxo etc. Não dá mesmo para mim. Sequer tenho grana e espaço para comprar tanta coisa, quanto mais para ler e reler tudo o que desejo. Então apenas opto por não fazê-lo. Mas acho natural quem ainda se deslumbre com o acúmulo de publicações caras, pois sei que afaga o ego e dá um certo prazer tátil em relação ao possuir.
Abraços e... Kimota!
P.s.: Tomei conhecimento deste lançamento pelo blogue do Leo, o SubmundoHQ, único espaço que ainda acesso para saber das novidades do mercado.