domingo, 18 de abril de 2021

Uma Vida Chinesa, HQ de Ôtié e Kunwu

Delícias do comunismo...

O quase subtítulo de Uma Vida Chinesa ("De Xiao Li a Lao Li") nada mais quer dizer do que "Do Pequeno Li ao Velho Li". Trata-se, pois, de visão das profundas transformações chinesas, desde a insanidade da Revolução Cultural até o desenvolvimento financeiro (mas jamais humano) conquistado após a morte de Mao Tsé-Tung, com melhorias notáveis em relação à mortandade existente devido à fome extrema, ausência de higiene básica e expurgos (linchamentos públicos, detenções em campos de concentração e execuções sumárias).

Penso nada chamar tanta atenção no comunismo quanto à fome massiva, onde grande parte da população falece devido à falta do mínimo para dormir de estômago forrado. A documentação acerca do canibalismo na Rússia pós-revolucionária é farta hoje em dia, sem contar o Holomodor ucraniano. Em relação à China maoísta, dados oficiais apontam em torno de 10 milhões de mortes decorrentes de inanição. Imagino os dados reais, além dos oficiais. Acredita-se que na Coreia do Norte, ainda hoje, pratique-se o canibalismo de entes queridos recém falecidos. É muita proteína para se jogar à terra. E, neste gibi, a fome é retratada de maneira crudelíssima - como foi, ora - por quem a testemunhou, o Pequeno Li, hoje artista gráfico consagrado.

Sempre me interessei por Deng Xiaoping e seu pensamento à frente do tempo, dentro do Partido. O comunismo se converte em seu oposto tantas vezes quando for necessário, consumindo-se em seu processo dialético, onde todos os meios são válidos para a saúde do Partido, seus líderes e classe burocrática. O fim sempre foi concentração de poder num partido hegemônico, controle social intenso e supressão da individualidade. Deng Xiaoping acreditava no capitalismo dentro da vida chinesa, pois ele seria apenas mais um meio dentre tantos, sem prejudicar a essência do regime; pelo contrário, lhe dando força e sobrevida. Não é à toa que o líder político foi perseguido pelos maoístas mais ferrenhos, enfrentando anos de fuga e isolamento.

Enquanto poucos membros da intelligentsia comunista ao redor do globo percebiam que o capital era apenas a superestrutura do sistema ocidental a ser combatido, Deng Xiaoping  e seus asseclas já o sabiam. E por isso foram vitimados pela insanidade da Revolução Cultural e seus expurgos. Estes, prática comum dentro dos delírios do comunismo, impingindo humilhações públicas, linchamentos e mortes por razões quase sempre obscuras ou até mesmo inexistentes. Os expurgos no stalinismo, por exemplo, eram realizados a toque de caixa, por meros cálculos matemáticos: determinada parcela de dado povoamento, considerando sua estimativa populacional, deveria ser executada. Simples assim. Com isso, aos poucos, mudariam o tecido social e isso precipitaria a revolução ao "fim da História", seja lá que merda for essa. É muita loucurinha nessas cabecinhas vermelhas.

Xi Zhongxun, pai do atual líder político chinês Xi Jinping (o pai da Covid 19, conhecido graciosamente por Ursinho Pooh), foi vitimado por vários expurgos, entre idas e vindas à vida ativa dentro do Partido. E assim foi com o pai do autor/protagonista deste gibi, Li Kunwu (o pequeno e velho Li do subtítulo). Seu genitor, de membro ativo do Partido a escravo numa colônia de reeducação, retornou à vida pública ocupando bons cargos tão logo o pensamento de Xiaoping se sobrepôs ao de Mao Tsé-Tung: dinheiro, propriedade privada e mercado seriam necessários para a vida chinesa dominar o mundo com sua doutrina. Que doutrina é essa afinal, nos tempos atuais? Controle social intenso, burocratas ricos, capitalismo de compadrio. Só. O marxismo muda ao sabor da ocasião e continua sendo comunismo mesmo assim.

Vemos a revolução chinesa, de Mao até os tempos modernos (O Tempo do Dinheiro, como diz o autor desde a capa do terceiro volume), pelos olhos do ilustrador de jornal e propagandista Li Kunwu, com auxílio do francês Philippe Ôtié nos roteiros e direção técnica.

Felizmente, esta obra nos chegou pela WMF Martins Fontes. A maioria das editoras lacradoras que possuímos, certamente, jamais publicaria algo assim. Mesmo que, dentre tanto sofrimento e a previsão de povir endinheirado igualmente sinistro, Li Kunwu conclua sua narrativa feliz consigo mesmo, por ser chinês, viver o modo de vida chinês na China e estar na China. É e foi a única existência conhecida por ele: uma vida plenamente chinesa. E ele está em paz com isso.

Os volumes são divididos em I. O Tempo de Meu Pai, II. O Tempo do Partido e III. O Tempo do Dinheiro. As capas de cada volume explicitam a evolução social: de casebres miseráveis a arranha-céus, com Li Kunwu envelhecendo enquanto pinta murais publicitários: o grande Mao e o período revolucionário; o desenvolvimento econômico pós Deng Xiaoping e, finalmente, a arte do autor/protagonista empregada em publicidade privada (campanha de água mineral, com mulheres modernas e empoderadas).

O trabalho editorial ficou bacana: volume em capa cartonada com orelhas, fontes generosas, miolo em papel meio amarelado similar ao pólen bold e tudo com boa gramatura. Os três volumes vêm acondicionados num box meio fraquinho, mas o qual ajuda na organização do material. Andréa Stahel M. da Silva traduziu todas as três partes para nossa língua, publicadas entre os anos de 2015 e 2017. E aí está a parte ruim de ir comprando obras assim aos poucos: você perde a unidade de leitura, lendo-as aos pedaços, e ainda perde o box para acondicioná-las.

Optei por vídeo (abaixo) para melhor exibir os livros, no lugar de fotografias.

Abraços famélicos e até a próxima.

7 comentários:

  1. Olá Neófito, tudo beleza?

    Não sou muito conhecedor de quadrinhos. Da banda desenhada gosto mais de histórias de caderno único ou box pequeno, como essa que você mostra aí. Li mangá durante um tempo, mas a maioria são histórias demasiadamente grandes e enroladas.
    Acho que, quanto mais próximo da realidade, mais legal o quadrinho, pois mostra dilemas que outras pessoas podem viver de maneira direta, sem ser por meio de parábolas. Alguns quadrinhos legais que tenho em casa nesse sentido são Duas Vidas (será que trabalhar para subir a the company ladder é a coisa mais importante?), Daytripper (as diversas vidas e os diversos fins que poderíamos ter vivido caso seguíssemos outro caminho em uma encruzilhada, algo que sempre pensei).

    Aqui, dificilmente publicam coisas minimamente relacionadas ao contra-socialismo-comunismo. O ideal de igualdade, de entregar de mão beijada esse dito "bem-estar social", cotas, auxílios e etc, já está demasiadamente enraizado na cabeça do brasileiro, tanto que falar qualquer coisa contra isso é considerado uma heresia, um argumento de alguém "privilegiado". Mas as vezes aparecem pessoas corajosas que resolvem publicar, mesmo podendo sofrer represálias futuras.

    Acredito que, em um futuro próximo, a China dominará o mundo pelas beiradas nesse "Tempo do Dinheiro". Aos poucos eles estão aprendendo as tecnologias do resto do mundo para fabricação e produção. Hoje, já somos inteiramente dependentes da produção que vêm de lá, feita de maneira extremamente barata, aos montes. Estamos viciados em consumo de eletrônicos e suas novidades incessantes. E eles usarão esse domínio para tomar conta do fluxo de dinheiro do mundo.

    A nós, resta esperar para ver o que será do mundo quando o império de Mao e seus descendentes subir e tomar o posto dos EUA.

    Nota breve para a bela chinesinha no inicio do post. Essas moças orientais que têm pele de leite e são bem esguias e angelicais são realmente umas delicinhas....

    Abraços.

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    1. Fala, Matheus!

      Cresci comprando formatinhos com aquele “continua” ao final da história. Era abusivo. O arco estava fechado nos EUA há anos. Aí, num formatinho com quase 80 páginas, tínhamos apenas ¼ com a história principal. Por que fazer isso com o leitor aqui no Brasil, se poderiam publicar tudo? A resposta sabemos bem.

      Quando algo sai a conta-gotas, evito comprar. Esta HQ mesmo… Jamais a compraria em pedaços. Quando o próximo volume chegasse, teria que reler o anterior para reavivar a memória.

      Li Daytripper no lançamento e andei pensando em relê-la estas semanas! É um bom gibi. Mas fizeram um hype desnecessário quando de sua anunciação. Foi a época quando “os gêmeos” (era assim que falavam) estava topo. Mas, sim, é uma leitura recompensante.

      Sobre o viés de nossas editoras, destaco sempre a Veneta e seus prefácios panfletários que dão ânsia de vômito. E a Pipoca & Nanquim parece estar indo pelo mesmo caminho. Isto para ficar em apenas duas de quadrinhos. Se fizermos uma análise geral…

      Os parques industriais das maiores potências globais está na China. Isso é curioso porque, mesmo durante o regime soviético, parte da indústria americana estava em solo da ex-URSS, como se descobriu após a queda do socialismo no leste europeu.

      Se observarmos bem, boa parte das políticas globalistas implantadas no ocidente parecem vir da China. Em breve, “não teremos nada e mesmo assim seremos felizes”, é o que dizem. O controle social se intensifica a cada dia e não duvido que tenhamos algum sistema de crédito social.

      Não compreendo claramente bem qual o plano por trás dos intelectuais democratas americanos, mas propositalmente estão arruinando sua economia e abrindo as porteiras aos “inimigos”.

      Magrela, branquinha… quem não gosta?

      Abraços!

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  2. Esse tipo de HQ é necessária em nossos tempos. Lamentavelmente, recebe bem poucos holofotes.

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    1. Olá, Guru de Varginha.

      Grato por sua presença por aqui. Seja sempre bem vindo. Eu diria que propositalmente rebem pouca ou nenhuma luz...

      Abraços!

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  3. Olá, meu amigo!

    Compreendo perfeitamente. As maiores bobagens, hoje, parecem precisar de legendas!

    Vídeo é bem melhor para mostrar o produto e quem sabe, assim, não consigo trazer alguém do YT para o Blogger!.

    Abraços!!!!

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  4. bem, pelo menos partido aprendeu com o capitalismo
    engraçado como o tempo vai passando e ambos vão ficando cada vez parecidos
    quem sabe um dia serão a mesma coisa, mas com nomes diferentes, tipo protestantes X católicos X muculmanos X judeus que adoram o mesmo deus, mas não topam fazer isso juntos

    abs!

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    1. Olha, meu amigo...
      Acho diferentes os sistemas. O americanos possuem um regime de mercado. Isto é um modelo. Já os chineses possuem um capitalismo de Estado, onde você é apenas um gestor da empresa que criou. Ex.: anda na linha, caso contrário some do mapa e o Partido põe outro em teu lugar.
      Mas, aos poucos, o sistema americano caminha para o socialismo.
      O mundo anda confuso...
      Abraços!

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