Como falei anteriormente, ter sido Oficial de Justiça (justiça estadual), enquanto estava na faculdade de Direito, me rendia situações memoráveis, tão bizarras quanto à lambida no sangue por Ademir, o corno artesão. Uma delas foi com Abelardo, o cego sinistro.
Tratava-se de um inventário enrolado e sem fim. Eu precisava encontrar a inventariante que sumiu do mapa após consumir todo o espólio: a mulher tinha torrado a grana do defunto e os irmãos estavam - obviamente - incomodados com a situação. Vamos chamá-la de Maria. De posse de sua possível localização, fui bater à porta de uma casinha até bem situada próximo ao centro da cidade. Havia uma murada baixinha (meio muro) com portão de ferro aberto. Entrei e percebi que a porta encontrava-se entreaberta, com fresta generosa. Bati, bati e nada. Então fiz como se faz no interior deste Brasil de Deus-Pai: fui penetrando e falando alto "Oh de casa, tô entrando". Casa vazia, sem nenhum móvel - exceto por a cadeira de madeira no final da sala, onde o velho estava sentado, apoiado na bengala.
- Boa tarde, meu senhor. Mora aqui?
- Sim, senhor. Sou o Abelardo.
- Conhece Maria? Ela está?
- Conheço, sim, mas ela não se encontra. Me deixou aqui, foi embora e não vai voltar.
Como ele olhava pro nada, percebi ser cego. "O senhor é cego, seu Abelardo?". "Sou, sim". E ainda continuou falando algumas histórias estranhas sobre gostar de ficar ali sozinho e que qualquer coisa falaria depois com Maria. Como o velhote não estava em cativeiro (a porta encontrava-se destrancada), aparentava bons tratos (limpo, roupinhas decentes etc.), apenas agradeci a cordialidade e fui saindo de fininho sem lhe dar as costas.
Suspeito que Abelardo, o cego, esteja lá até hoje, sentando na mesma cadeira de madeira, com ambas as mãos apoiadas na bengala, fitando o nada com seus olhos opacos.
Abraços verídicos e até a próxima.