domingo, 9 de agosto de 2020

Lembre-se de Boris Legasov


Da janela lateral / Do quarto de dormir
Vejo uma igreja  / Um sinal de glória
Vejo um muro branco / E um vôo pássaro
Vejo uma grade / E um velho sinal
- Lô Borges em Paisagem da Janela

A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena.
- Seu Madruga em Chaves do Oito.

Deixe-me contar uma historia. Era uma vez... eu tinha alguém com quem me importava. Era um parceiro. Alguém sob meus cuidados. E, neste mundo, esse tipo de merda é boa para uma coisa: te matar. Então você sabe o que fiz? Deletei esta merda. E eu percebi que tem que ser só eu.
- Bill em The Last of Us

Minha relação com videogames é curiosa porque, desde o Super Nintendo, parei de jogar e retomei apenas há pouco tempo porque minha filha queria um console. Falei sobre isso em postagem anterior. Logo, ela largou de mão o console e retornou aos joguinhos de celular e tablet, os quais são até baratos para se adquirir. E confesso (com orgulho) que ela é crânio em tais aplicativos. Penso que as dimensões do controle do XBox desestimularam-na. Afinal, trata-se de uma criança com cinco anos de idade. Mas saí ganhando bastante com tal compra, pois emulei muita coisa do passado no próprio console (baixando ROMs e salvando na conta One Drive) e tomei conhecimento do que o mundo dos games havia se tornando. Quanta coisa boa andaram fazendo neste meio tempo! Foi um passo para adquirir o PlayStation 4, especialmente diante de seus exclusivos. Um dos primeiros jogos comprados, na mesma semana que o console, foi The Last Of Us, por algo em torno de R$ 45,00 nas Americanas perto de minha casa.

Durante vários anos, constatei que autores de famigerados gibis vinham realizando obras notáveis, superiores em aspectos literários até mesmo do que muita publicação da dita "alta cultura". Hoje, percebo que jogos eletrônicos conseguem nos dar narrativas com qualidades superiores às encontradas em cinema e seriados. E TLoU é aquele joguinho a me pegar do início ao final. A carga humana ali envolvida - entre tramas e subtramas de amor, amargura, ódio, esperança e vingança - me mostrou como, em jogos, havia possibilidades narrativas para me puxar da rotina de ver e rever os mesmos filmes, livros e seriados. Para quem desconhece, vai o resumão: Joel, véio carrancudo que perdeu a filha no início do apocalipse zumbi (setembro de 2013, o fatídico Outbreak Day), é contratado para, utilizando seus dotes de contrabandista, conduzir a garotinha Ellie através dos Estados Unidos para que o grupo miliciano Vaga-Lumes possa desenvolver vacinas contra o surto da zumbificação causado pelo fungo Cordyceps. Ellie é imune ao fungo. A partir daí, naturalmente, entra o antigo clichê do velho turrão que amará aquela garota como se fosse sua filha.

Cinco anos após os eventos do primeiro jogo, The Last of Us Part II chega até nós. Mais brutal do que o primeiro, foca em vingança e redenção. Tentaram fazer burburinhos, quando do lançamento do game, diante da homossexualidade de Ellie (algo já visto desde a DLC Left Behind) e da transexual mirim Lev/Lilly. Tentaram à toa. Na verdade, quem mais se esforçou para tentar fazer disso bandeira foram grupos LGTBSYXHRCQ(ETC), "alertando" sobre possível boicote ao lançamento devido a isso. Quanta asneira! Aliás, no primeiro game, o guerreiro urbano Bill é gay, ora. Sabe quem liga para isso? Ninguém. O primeiro jogo vendeu bastante e o segundo segue o mesmo feliz destino. E vale a pena. Pois é um ótimo jogo. Me diverti bastante, do início ao final, zerando ambos.

Um das coisas que mais gosto em games assim é a coleção de histórias através de documentos. Na pequena comunidade de Hillcrest, vamos juntando peças do bom vizinho Boris Legasov, exímio arqueiro e pai de Sofia. O bairro quer se ver livre do Exército e apoia a chegada dos Lobos (grupo armado revolucionário autodenominado antifascista - o que vemos em pichações e alguns documentos). Contudo, os revolucionários logo se mostram piores que o resquício governamental (FEDRA) e tocam o terror. Os habitantes locais querem a saída dos lobos para que conduzam, eles mesmos, a vida local. Todos tentam encontrar apoio em Boris e parecem ter nele um grande líder comunitário. Mas, devido a pichações anti-Lobos, Sofia é executada pela milícia. Boris reage atirando contra uma viatura. E, logo, tomados pelo medo e pela lição de sabedoria "farinha pouca meu pirão primeiro", os bons vizinhos não exitam que jogar Boris na fogueira. Este, ensandecido, consegue se vingar de todos antes do próprio fim, de uma maneira sádica e bastante criativa.

Momento onde Ellie encontra Boris e continuará sangrando Lobos com seu arco.

Podemos retirar muitas lições disso e, aliás, algumas senti na pele, ao abarcar problemas coletivos e torná-los quase exclusivamente meus. Mas aí se vão vários anos e, atualmente, mantenho firme meus posicionamentos após algumas reflexões, defendo publicamente meus pontos de vista, tomo partido e assumo riscos; contudo, sei as limitações. Nunca deixe sua sobrevivência chegar ao dilema Boris Legasov. Em tempos de crise (no jogo, o pós fim do mundo), proteja exclusivamente a si e aos seus mais próximos. Parece duro pensar assim. Só que é a vida. Esta "pandemia" fajuta pela qual passamos é emblemática: desde o alto escalão do setor público se aproveitando para locupletação até a ralé dos barnabés endossando o "fica em casa" a todo custo, desde que seu pixuleco caia religiosamente na conta bancária todos os meses. Algumas poucas corporações - amigas do Poder, mais ricas do que nunca - e milhares de aproveitadores se valendo da ocasião para fomentar desinformação. A coisa é por aí.

Recordo que, na faculdade, tentei defender uma colega dos abusos de uma professora durante prova oral. A 'fessora não deixava a guria construir seus raciocínios e estava no afã de jogá-la na lenha. Parecia até algo pessoal. Quando tomei partido elencando pontos objetivos do imbróglio, a "vítima" despertou seus genes de mulher de malandro e passou a dizer que a abusadora estava correta e que ela é que precisava compreender melhor sua pedagogia etc. Ou seja: fiz papel de mané, para variar. Fui o Boris. E cito este exemplo pequeno para mostrar o seguinte: o povoréu é igual a gado, indo com a manada e sempre ficará ao lado do mais forte.

Ah, sobre o jogo em si: vale a pena. Há vários furos na trama as quais realmente não nos descem. A sanha de vingança de Abby e a maneira boba como Joel e seu irmão (gatos escaldados do mundo colapsado) são pegos não colaram tão bem. O ímpeto de revanche de Ellie e suas apostas também não parecem fazer tanto sentido, para, num supetão, ter algum alento de redenção em poucos segundos de reflexão. Mas, convenhamos, o mundo acabou. Se em plena época de "pandemia da Covid-19" as pessoas têm seus cérebros laceados, com registro de cidadãos mantendo distanciamento social até mesmo dentro da própria casa e fazendo exercícios, em casa, com máscaras, então o que dizer da mente de quem vê o mundo em frangalhos? Deixando de lado esses pequenos problemas narrativos (comuns em qualquer mídia), o jogo é bom mesmo. Visualmente impecável e com gameplay fluida de dar gosto.

Comprei a edição especial na pré venda por ótimo preço. Acabou me custando em torno de R$ 180,00. Hoje, vi que estão vendendo por mais de quinhentos paus. E isso é outra coisa que descobri no mundo do games, mas sem surpresas. Afinal, em todo o mundo chamado atualmente de geek (pessoas com bastante tempo livre para punhetar cultura pop barata) encontramos bizarrices, especialmente preços exorbitantes. Quando o assunto é jogo eletrônico, a coisa é medonha. Edições especiais custando o dobro de consoles, controles especiais com temas, acessórios diversos... enfim: um mundo de coisas "especiais" para pessoas "especiais" a fim de torrar sua grana com porcarias. Há alguns meses, pensei em comprar a mídia física de What remains of edith finch, pois joguei pela assinatura do XBox e gostei tanto que pensei em tê-lo. Ao pesquisar, cheguei a encontrar a mídia normal (caixinha com disco, nada mais) por quase R$ 500,00. Eu mesmo não me dou a esses arroubos com livros e HQs, muito menos com jogos. Não critico quem o faça. Afinal: nós morremos e o dinheiro fica. Só me parece meio trouxice e alimentação dessa insanidade.

Enfim, é isso. Só queria mesmo alertá-los: lembrem-se de Boris Legasov. 

Abraços fúngicos e até a próxima.