sábado, 20 de março de 2021

Quadrinhos de Charles Burns

Dias chuvosos

Chovia uma triste chuva de resignação.
Manuel Bandeira

Era como se eu visse o futuro. 
E o futuro não fizesse nenhum sentido.
Black Hole

A imagem acima é da janela do quarto de minha filha. Ela quase não utiliza o próprio quarto, exceto para brincar algumas horas ao dia. E desde que nasceu dorme comigo. Acho que chegará à adolescência assim, dormindo com os pais. Se fosse menino, tentaria forçar que dormisse só. Mas garotas podem se dar ao luxo de ser um pouco medrosas e querer o afago paterno enquanto dormem. Então quem usa bastante seu quarto sou eu, lendo ao lado desta janela fortificada. Meti grades aí por garantia porque ninguém sabe o dia de amanhã. Daí pra frente, não há quase casas, exceto algumas esparsas dentro de pequenos roçados. O local é tranquilo e o maior perigo sucedido próximo da janela foi uma jiboia.

Os dias estão chuvosos. Isso certamente é muito bom para quem planta, cria animais e precisa de florada nos próximos meses para produção de mel. Além disso, é quando barragens públicas e privadas serão abastecidas. É assim, igualmente, onde mantemos vivos lençóis freáticos. Não preciso falar sobre os benefícios das chuvas. Todos sabemos. O único problema é que estou com obras em casa e a chuva atrapalha. Neste exato momento, estou com dois pedreiros ali fora, com os braços cruzados admirando este belo dia de chuva. E receberão do mesmo jeito.

Dias de chuva são para estar em casa de boa, tomando café, fumando e, claro, lendo. E esses dias andei lendo e relendo bastante coisa. Aqui, destaco o trabalho insólito de Charles Burns, feliz descoberta em minha vida.

Meu primeiro contato com Charles Burns foi num pequeno conto encartado no estranho gibi Little Lit: Fábulas e Contos de Fadas em Quadrinhos, publicado pela Cia das Letras (acho que ainda não existia o selo Quadrinhos na Cia) em 2003. Tenho este gibi ainda hoje, devidamente guardado. A revista gringa Raw editava material regular de Burns, devido à amizade entre este e o casal radical chic Art Spiegelman/Françoise Mouly. E Little Lit reúne material da Raw. A "história" se chama Sustolândia e me passou quase desapercebida de tão ruim: na verdade trata-se de uma grande ilustração em página dupla, onde você deve encontrar ovos e serpentes! Vai entender...

Em meados de 2010, numa gibiteria em Recife, conheci Black Hole, em dois volumes pela Conrad. E, cara, pensei porque não tive a oportunidade de ler algo assim quando mais jovem. Mesmo adulto, me envolvi com a trama: adolescentes contaminados pela "praga juvenil" adquirem deformidades variadas (alguns se tornam monstros) e precisam se retirar, habitando matagais. Fui realmente tocado pela trama de dor e solidão de todas aquelas personagens, bem como pelos laços de amizade mostrados. Me senti com 15 anos de idade, entre meus saudosos amigos. A arte em elevado contraste (muito branco, muito negro) de Burns nos prende a atenção a cada página. E, claro, como não gostar de suas mulheres magrelas e peludinhas (bem old school). Sou entusiasta de xoxotas peludas, cada vez mais raras.

Depois, Black Hole saiu em volume único pela Darkside e, obviamente, comprei. Estou evitando comprar papel. Falei bastante sobre isso. Mas comprarei tudo o que sair de certos autores. Um deles é Charles Burns. A Darkside publicou, ainda, antologias de contos como Big Baby e e El Borbah. Certamente, comprei ambos os livros. Sua magnum opus continua sendo Black Hole. Devido à idade avançada do autor, penso que jamais fará algo tão bom, superando a si mesmo. Quadrinho exige bastante tempo e dedicação. Não é tão "simples" quanto apenas escrever, como enfatizou Lourenço Mutarelli.

Desde 2018, podemos ler a tradução de Sem Volta, pelo Quadrinhos na Cia. E tudo colorido. É o segundo melhor trabalho do autor, numa trama entrópica (a melhor palavra que me vem à cabeça para defini-la), com homenagens que vão d'As Aventuras de Tintim a William S. Burroughs. Não exatamente homenagens. As referências são essenciais à trama, bastante parecida com Daniel Clowes. Em Sem Volta, temos uma história dentro de uma história dentro de outra história e, aparentemente, infinita (sem fim, "sem volta"). Como sempre (parecido com as tramas de Chris Ware), temos homens brancos fracos perdidos na vida, mulheres putianes (fortes e determinadas), bizarrices inexplicáveis e todo mundo meio que se fodendo. Um retrato do ocidente contemporâneo, afinal. Parece lacração vazia, de longe. Mas não é. É a cara do ocidente e sua covardia, onde homens pequenos se rastejam para mulheres borderlines que já rodaram em dezenas de carrosséis de pirocas. A gadice masculina não possui tamanho e merece ser retratada cruamente.

Percebo que muita gente não gosta do autor. Acho que o apego ao mainstream faz isso conosco. Além de tudo, muita gente não se entrega fácil a enredos onde a realidade e o nonsense caminham lado a lado. E às vezes esses arroubos avant-garde parecem meio forçados por intelectualóides sem conteúdo, apelando ao insólito apenas porque não sabem mesmo realizar algo bom. Mas creio não ser esse o caso de Charles Burns e que, sim, vale à pena se dar à sua obra, em especial Black Hole e Sem Volta.

É isso. Só deu vontade de recomendar esses quadrinhos porque nunca escrevi nada sobre o cara e andei relendo suas obras. Também sondei o artbook Free S**t do artista. Mas ainda não o comprei. Se já leu dele e desgostou, dê outra chance.

Abraços e até a próxima.


Big Baby

El Borbah

Black Hole

Sem Volta


Sustolândia em Little Lit

12 comentários:

  1. Linda arte

    Esse autor tá na minha lista mas falta me disposição, sempre tem muita coisa pra ler antes.

    A foto da janela ficou bem legal, dá até pra imaginar o vento movimentando a vegetação fazendo ela dançar num ritmo quase hipnótico

    Esses lançamentos da darkside são tentadores , mas o espaço na estante dquadrinhos tá restrito .

    Quando eu conseguir trocar de casa volto a arrematar essas obras

    Abs!

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    1. Olá, Scant.

      Não possuo realmente queixa alguma em relação à qualidade editorial. Infelizmente, por questões de grana, espaço e filosofia de vida, precisamos colocar de lado várias possíveis aquisições.

      Quando trocar de casa, invista no tão pesquisado modelo de escritório: móveis planejados para guardar tudo e com bastante sobra de espaço! É um belo investimento em organização, paz de espírito e também financeiro, já que valoriza o imóvel. Minha organização foi bastante casual e aos poucos. Hoje, planejaria algo com bastante cuidado.

      Abraços!

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  2. Olá Neófito, tudo bem?

    Achei interessante a foto da janela. Sua janela é bem moderna, para os padrões que conhecia do nordeste. E seu fundo de quintal está bastante arborizado e verde. Deve ser muito bom morar por aí: ar fresco, muitas plantas e frutos, céu noturno estrelado e ainda poder ter uma casa moderna e bem equipada.

    As casas em que passei no interior do Ceará, ainda, em sua grande maioria, têm aquelas portas com divisória na metade, em que fecham só a parte de baixo, deixando a parte de cima aberta (não sei se as suas são assim). As janelas eram sempre de madeira, aquelas que estão a tentar vencer o tempo. Os trincos de ferro, alguns já enferrujados, gigantescos, com aquelas chaves grandes.

    Hoje, algumas casas já estão se modernizando por aquelas bandas, mas essa memória ainda é bastante forte em mim. A portinha semi aberta e uma rede armada do lado de fora, no alpendre.

    Tenho que admitir que nunca vi chover quando estive no Ceará. O máximo que vi foi pingar. Acredito que nunca vi o Nordeste tão vivo como você o vê. Espero que ainda possa ver o mesmo pelas minhas bandas em próximas visitas a minha "terrinha".

    Não conheço muito de quadrinhos. Charles burns também não conhecia. Gosto desses posts pois fico conhecendo algo novo para ler.

    Gostei bastante dos desenhos, gosto muito desses traços mais cartunisticos, onde não parece que o cara está tentando fazer algo muito real, sinto como lendo um desenho animado estático e despretensioso. Entretanto, procurei na internet e não achei sites com o scan desse livro "sem volta". Achei a história dele interessante. O Wikipedia diz que é um compilado de 3 livros entre 2010 e 2014 (X'ed Out, The Hive e Sugar Skull, só encontrei os dois primeiros no Pirate bay).

    Se tiver dicas de bons sites com scans de quadrinhos e leitores para computador, agradeceria a indicação.

    Abraços.

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    1. Olá, Matheus!

      Não se engane pela foto. Essa janela e as grandes foram feitas por minha sogra, com metalon. Ela cortou o metal, soldou, lixou e pintou. É algo bem barato, mesmo. Os vidros eu mesmo prendo com silicone.

      A vista é dos roçados ao lado, não me pertencem. A tranquilidade é boa, mas é um local pobre, fim de bairro e nem tão belo como podemos supor pela imagem. É onde minha esposa nasceu e cresceu. A casa também não é moderna, mas, sim, uma casa velha que exige bastante manutenção porque foi mal edificada há vários anos. Tenho bons eletrodomésticos e móveis. Mas a casa em si é meio-boca. Ou seja: bem equipada, mas não moderna.

      Essas portas mencionadas por você ainda existem em casas mais antigas. Algumas pessoas, mesmo com grana, conservam. Mas estão extintas. Só sobrevivem as de edificações antigas. Não é mais tão fácil fazer portas assim, para área externa, que suportem chuva e sol, porque as madeiras nobres estão escassas. Tenho apenas uma porta de cedro, para você ter ideia. Porque tá osso conseguir cedro. O restante é de lourinho e apenas longe de chuva.

      A região onde me encontro é seca quase todo o ano, exceto nestes primeiros meses. A partir do mês que vem não cairá uma gota sequer. A sorte é que há muita água sob o solo e não sofremos com falta de água devido a isso. Em outros sertões, não há como: ou estoca e recebem de grandes barragens, ou fodeu. O Ceará é mais complexo: há mata litorânea, enormes serras com boas chuvas e clima legal e o sertão sofrido.

      Já passei TRÊS anos ser ver chuva no Piauí. Felizmente, os “invernos” de início de ano estão voltando.

      Mas o NE é bastante vivo mesmo com este sertão encravado em seu peito. Tanto nas zonas da mata quanto no agreste, temos bastante verde. Também há bonitas e vivas regiões serranas. E mesmo no sertão aprendemos a ver a vida. Quando dirijo tarde da noite cruzo com tamanduás mirins, cutias, jacarés, tatus, cágados etc. Nestas árvores ao lado temos saguins. Mais ao sul vemos muitas capivaras. Quem gosta de atividade mateira encontra veados, onças e caças maiores ainda aqui no entorno. O sertão é vivo ao seu modo.

      Acho que ainda não estão rolando scans de Sem Volta por ser algo relativamente recente e sem muito interesse do grande público. De alguns autores, nunca procuro scans porque são aqueles caras que quero ter na estante para ler e reler. Black Hole já li três vezes, por exemplo, sendo a primeira vez pela Conrad. Mas, claro, sou um grande defensor dos scans por mil razões já esmiuçadas.

      Abraços!!!!

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    2. Ah, sobre dicas de sites, quando baixo algo é totalmente aleatório. Se quero Turma de Mônica Abril, por exemplo, busco em pesquisas a esmo e chego onde quero. E assim por diante. Ando percebendo é uma dificuldade recente para conseguir arquivos digitais... Mas pode ser mera impressão e porque não ando pesquisando tanto.

      Havia muito link com scans em drives. Eu até salvava alguns desses links para ir baixando. Mas eram toneladas de material e quase tudo DC/Marvel. O tempo que eu gatava garimpando era um saco. Arquivos com 10, 15 GB etc. Salvava esses links num bloco de notas e nem sei mais se ainda o tenho. Faz tempo. Mas se achá-lo, te remeto num comentário em seu site!

      E por aqui, graças a Deus, está bem. As chuvas nos dão um bom clima e não precisamos nem de ar condicionado para dormir algumas noites. E a vida floresce, obviamente. Espero que esteja tudo bem contigo. Se não 100%, ao menos em grande parte.

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    3. Programa pc - cdisplay
      Baixar quadrinhos hoje: sugiro via jun

      https://obscult.blogspot.com/2020/12/blog-mochileiros-dos-quadrinhos.html?m=1

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  3. Cara, eu nunca tinha ouvido falar de Charles Burns. Gostei demais do que pouco que você postou. Principalmente o "rabinho" daquela gostosa.
    Meu filho, de 11 anos, também, volta e meia, gosta de dormir comigo. Eu não tento convencê-lo do contrário. Sei que são os últimos anos em que ele ainda me quererá por perto. Com a adolescência, até vergonha eles passam a ter da gente.
    Sua sogra é quem confeccionou a janela? Pããããããta....
    Também reparei no arborizado fora dela, imaginei um lugar calmo e de clima ameno... me pareceu até uma vegetação de canabis...

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    1. Fala, Marreta.
      Não é tarde para conhecer esses autores menos "mainstream". Se bem que, hoje, Burns já possui um status meio "cult".
      Sobre: "Eu não tento convencê-lo do contrário", tem que deixar à vontade. Se às vezes ele sente essa necessidade, é porque emocionalmente está precisando. E como vc bem disse: em breve isso passará e restará apenas saudade desta época.
      Sim, a véia é metalúrgica. Na pequena localidade onde ela reside, mantem uma oficina e faz trabalhos para povoados próximos. Parte do trabalho, acho até pesado para ela, que faz tudo sozinha. Mas se ela gosta... E ao menos está produzindo.
      As árvores mais distantes são nativas. Esqueci o nome. A que parece cannabis é a copa do famigerado Nim Indiano (que algumas pessoas chamam de ninho de anjo). O Nin eu que plantei, para trazer sombra.
      O clima só está ameno porque está chovendo. Em regra, o calor é de pelar.
      Abraços!

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  4. Oi, Fabiano.
    Amo quadrinhos. Desconheço melhor forma de expressão narrativa do que as HQs. A quantidade de informação que você pode inserir numa página de quadrinho é algo que você não consegue fazer numa prosa convencional. Ao menos, é o que penso.
    Nunca é tarde para abrir mais esse leque, mas obviamente precisaria sacrificar as leituras atuais, ao menos em parte.
    Abraços!

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  5. Fala em chuva, aqui hoje tava chovendo...uma beleza. O local onde trabalho também está em obras, mas eles deram um jeito de fazer um telhadinho de lona e estavam a todo vapor.
    Bem reforçada essa janela, hein...se precaveu bem, hehehe!
    Quanto aos quadrinhos, não posso opinar sobre o que não conheço, mas sempre curto ler essas tuas introduções e divagações sobre o cotidiano.

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    1. Olá, loirinha.
      Mas chuva aí é cotidiano. Aqui é festa. Rs
      Estamos aqui para melhor "divagar".
      Abraços!!!!

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