domingo, 19 de fevereiro de 2017

Postagem sebosa [ comprando em sebo e livraria ] e o futuro dos livros



A mítica The New Yorker se orgulha em ter grandes mestres da ilustração em sua história. Atualmente, penso que o melhor é Chris Ware - dentre os poucos que conheço. Cada capa da revista fica na memória e, emoldurada, ficaria bem em qualquer parede. Achei a ilustração acima, de Daniel Clowes (não há como confundir seu traço) emblemática. Mostra o que está havendo com a leitura como moda e o triste fim dos livros. Reparem a desilusão do leitor ao entrar numa moderna bookstore e encontrar de tudo à sua volta: bibelôs, sacolas ecológicas com imagens de gênios literários, luminárias, bonés e camisetas, além, claro, de e-readers. Mas ele queria livros! E a atendente lhe mostra, quase escondidos num cantinho, as poucas obras impressas que realmente ali existem. Triste! E só lembrando: Saul Steinberg, autor sempre mencionado por mim no site anterior, foi o maior capista da publicação, com quase cem desenhos.

Aproveito esta postagem para falar um pouco de sebos. Adoro sebos. Gosto mais de sebos do que de livrarias. Isso, claro, quando o sebo é bem organizado e possui um acervo de qualidade, e não apenas um amontoado de livros fubentos onde não encontramos praticamente nada servível. Pura zona empoeirada. Entretanto, há sebos que nos chamam atenção, ainda mais pelo acervo diferenciado que possui. É em sebos que encontramos obras raras ou esgotadas. Ou, então, aquele livro até recentemente publicado, mas que foi parar ali por rejeição de algum leitor ou como ponta de estoque de editoras. Os preços variam, e é preciso pesquisar. Sempre há muito livreiro pondo à venda porcaria por valores absurdos.

Há discussões acerca da origem da palavra "sebo". Não gosto dela. Acho depreciativa. Prefiro o "alfarrabista" utilizado em Portugal. Entretanto, já é algo bem enraizado na nossa cultura. Segundo alguns, sebo viria da época em que, sem iluminação elétrica, as pessoas liam junto à luz de velas (feitas à base de gordura animal). Assim, as capas ficavam engorduradas, ensebadas. E eram justamente livros assim (sujos) os negociados no mercado de usados. Outro segmento acredita que a denominação deriva do inglês second book; ou melhor: second-hand bookstore. Independentemente da origem, só sei que, se eu tivesse um sebo, o chamaria de Loja de Livros Usados. Sebo é uma denominação sebosa.

No Brasil, já temos ótimas iniciativas agregando sebos de forma on line, proporcionando ao consumidor pesquisa simultânea em várias lojas. O mais bem sucedido é, sem dúvidas, o Estante Virtual, espaço que também mantém um blogue com matérias interessantes do universo livreiro.

Por fim, destaco o aspecto ecológico dessa atividade econômica, repassando livros, possibilitando sua leitura por várias pessoas. E, abaixo, selecionei alguns vídeos interessantes sobre o assunto. Recomendo, ainda, a leitura das seguintes obras que tem o trato do livro como tema secundário ou principal: O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte; Memória Vegetal e O Nome da Rosa, ambos de Umberto Eco. Há outros títulos, claro. Mas esses foram os que li. Por fim, os deixo com o ótimo curta abaixo e um conto de Veríssimo. 

Abraços sebosos e até a próxima.


* * *
Sebo


O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o “plim” no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.

- Comprei um livro seu não faz muito.

Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.

- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos…

Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.

- Você leu meu livro? - ele perguntou.

- Li!

Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores novos.

- Não leu - disse ele.

- Li. Li!

Essa obscena compulsão de ser amado.

- Leu todo?

- Todo.

Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:

- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.

Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:

- Depois li de novo.

Ele nada. Exclamei:

- Uma beleza!

- Onde é que ele está?

Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.

Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros.

Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Ocupo-me tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.

Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:

- Que livro! Puxa!

Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:

- O último. Finalmente.

- O quê?

Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.

- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?

No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a ideia de descobrirem seu cacófato.

- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.

Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.

- Mas essas coisas não têm import… - comecei a dizer.

Mas ele me pegou e me estrangulou.

Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites.

Enfim. É o que dá frequentar sebos.

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