sábado, 23 de setembro de 2023

Cada criança com seu próprio canivete

Foto de Yogendra Singh

Mas, é claro que não vamos lhe fazer mal
Nem é por isso que estamos aqui
Cada criança com seu próprio canivete
Cada líder com seu próprio 38

A Montanha Mágica
Canção de Legião Urbana

Na postagem anterior, optei pelo título "Teve torcida gritando, quando a luz voltou", verso de uma canção de Legião Urbana. Como o poema compartilhado no post fala de chuva (metáfora, claro), recordei ser comum a falta de energia elétrica em minha infância e início da adolescência, especialmente quando chovia. Parece que faltava energia elétrica todas as semana. Acho que zonas urbanas estavam crescendo rapidamente e as companhias, por serem todas estatais (empresas públicas) e cabides de empregos, não acompanhavam tais avanços na infraestrutura. Quando a luz voltava, especialmente se à noite, escutávamos gritos vindos de todos os lugares: ricos e populacho na torcida pelo retorno da luz acesa e da TV para assistir às telenovelas.

Pensar em versos como "Teve torcida gritando, quando a luz voltou" me remete para os anos dourados de minha vida: infância, juventude. Como sou grato por ter tido uma boa infância, ter brincado nas ruas, conhecido gibis, participado de campeonatos de bola-de-gude, time de botão, dentre tantos outros. Improvisávamos redes de vôlei com cordas, quadras de basquete e, claro, campos esburacados de futebol nos terrenos baldios que mais pareciam lixões.

Falando em depósito de lixo, recordo quando íamos ao aterro sanitário próximo da casa de uma tia e, ali, procurávamos "objetos interessantes": quase todos instrumentos hospitalares descartados e "coisas fedorentas". Sim, eram pedaços de gente. Meu amigo Marcelo, um dia, achou algo que, creio até hoje, seria um seio podre. O mamilo ainda era visível, definido. O mesmo Marcelo que vivia se furando acidentalmente em agulhas de seringas e está vivo até hoje, firme e forte, pai de alguns moleques e tomando suas cachaças religiosamente aos finais de semana. Sua irmã, Jussara, era a menina mais bonita da rua. Dizem que essas garotas muito bonitas enfeiam na maturidade. Mentira! Ela é deslumbrante ainda hoje .

Éramos exploradores de becos, terrenos baldios e riachos contaminados por esgotos em crescimento - a cada dia, um encanamento novo -, até quando isolaram estes mesmos riachos com manilhas de concreto. Cada moleque com seu canivete vagabundo, cabo imitando osso, numa bainha de couro presa ao cós da bermuda. Meus tios e meu pai portavam revólveres 38 naturalmente em seus cotidianos. Tudo era simples, preto no branco: bandido era bandido; mocinho, mocinho.

Também tínhamos momentos diários de desfrutar algum bom filme (Sessão da Tarde, Temperatura Máxima, Tela Quente, Super Cine etc., isso para mencionar a Globo), bem como juntar uns trocos para jogar nos fliperamas - o melhor era o PlayTime, situado na Av. Rio Branco, onde às vezes tomávamos surras de moleques mais velhos que roubavam nossas fichas. Quando os pais de Dardo Andres e Rodrigo estavam de bom humor, passávamos os dias em suas casas, jogando Phantom System e tantos outros consoles ao longo dos anos. Às vezes sabíamos que o pai de Dardo estava nos xingando, mas não entendíamos nada porque era argentino, falava rápido e mal tinha aprendido português claro, mesmo há uns anos por aqui; ou recusava-se a aprender.

Os limites da zona urbana ainda eram curtos. Fácil, dava para explorar matagais, lugares atualmente ocupados por condomínios, concessionárias de automóveis, motéis e atacarejos. Explorações tranquilas. O problema era quando topávamos com algum cachorro do mato, criado solto por sítios. Aí era sebo nas canelas. Numa região perto do açude, às vezes víamos emas. Alguém inventava de criar esses pássaros gigantes por ali, soltos. E eles atacam! No primeiro sinal de ema à vista, era fugir sem destino, sem direção.

Vou parar aqui, senão este post não terá fim de tantas reminiscências. Mas fica a reflexão: você teve uma boa infância? Se sim, agradeça à sua divindade preferida por isso, pois o mundo, em regra, é uma bosta e cheio de gente ruim. E os problemas da vida adulta nunca dão descanso.

Abraços nostálgicos e até a próxima.

10 comentários:

  1. lembrei desse manga:
    https://mangalivre.net/20th-century-boys/online/11514/capitulo/1#/!page4

    infancia pra mim = tempos felizes

    cachorro do mato = "É o canídeo brasileiro mais bem conhecido. Cachorros-do-mato possuem uma coloração variável, exibindo uma coloração de cinza e marrom, usualmente com tons de amarelo. As orelhas são curtas com tons avermelhados. A cauda é relativamente longa com pêlos longos tendendo a uma coloração preta." nunca vi, mas é normal vc achar

    abs!

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  2. Existe o cachorro do mato "legítimo", mas os que mais víamos (e ainda vejo, aliás), são os normais, mestiços, que se tornam selvagens por naturalmente crescerem em zonas rurais, matando galinhas, ovelhas etc. Hoje em dia, onde moro, vejo muitas raposas. São bonitas de se ver. Pena que os habitantes de sítios matem todas que encontram, fora as armadilhas com cartucho de espingarda.
    Desconhecia esse site Mangá Livre!
    Tenho um mangá pela L&Pm chamado Aventuras de Menino, certamente uma das piores coisas que já li.
    Sobre sua infância, seja grato!
    Abraços!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Cara, baita relato!
      Eu tb admirava o escotismo. Via aqueles garotos vestidos com uniformes e indo para alguma aventura possivelmente legal e achava a ideia atraente. Mas eu não sabia se queria ser escoteiro, apenas achava bacana. E foi melhor não desejar, pois meu pai não bancaria e minha mãe já era uma porraloca que vivia de sugar a grana dele.
      Por um lado foi bom, pois a vida de moleque solto na rua me fez bem de alguma forma.
      Abç

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  4. Olá, Neófito. Ao ver a imagem da sua postagem, me veio a mente, instantaneamente, o filme "Conta Comigo". Uma jornada de auto descoberta de 4 amigos. Esse filme me marcou muito. Fazia a 5ª série do ensino Fundamental e havia chegado em casa depois de 15 minutos andando a pé com minha mãe (brigando pq fiquei de recuperação em 6 matérias), e justamente na tela da TV estava passando, na sessão da tarde, esse filme. Tempos depois fui assisti-lo e achei um baita filme. Sobre seu relato: tmb tive uma infância maravilhosa, Graças a Deus. Joguei muito vídeo-game. Bola na rua, pipa e etc. Mas sempre fui muito estudioso. Esse caso da recuperação me trouxe muita responsabilidade. Minha mãe trabalhava muito e eu queria poder recompensá-la com meus estudos. Nunca mais fiquei de recuperação. kkkkk. Desculpe o texto imenso. Abraço!

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    1. Clássico da Sessão da Tarde! Filme que resiste ao tempo. Minha esposa nunca tinha visto. Acho que por ser 10 anos mais jovem que eu. Então no ano passado o recomendei e ela adorou. Te sugiro o conto (ou novela) de King, chamado O Corpo, de onde veio a adaptação. Tenho um post aqui sobre o filme e sua adaptação para o cinema:
      https://www.blogdoneofito.com/2019/09/o-aprendiz-conta-comigo-e-um-sonho-de.html
      Recordo que um dia quase fui reprovado em Física e fiquei cismado com isso. Como repetiria o ano por causa de uma matéria? Como meu pai reagiria a isso? Eu perderia um ano de minha vida na mesma série? Então colei a prova toda de recuperação e passei de ano. Sim, foi errado. Mas passei de ano. E nunca usei Física para nada em minha vida mesmo. kkkk
      Abraços

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  5. Respostas
    1. Valeu, Marreta! Acho que sempre encontramos beleza do que fala de nossas infâncias. Ao menos para mim é assim, pois sou realmente grato pela que tive. Mas, certamente, sei que muitos não tiveram a mesma sorte e sofreram uma infância de bosta. Abraços!

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    2. Claro que é uma questão de vivência e de referência, mas acho que a infância do meu filho, hoje com 14 anos, comparada à minha, foi uma infância de bosta.

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    3. O problema é o paradigma. Você cresceu numa época de maior liberdade nas ruas, sem bombardeio de sub informação via internet, sem a vulgaridade pública dos dias de hoje, com menos violência. Mas creio que, para os dias de hoje, seu filho teve uma boa infância e adolescência, com um pai atencioso na cola, boas refeições, protegido dentro do possível etc. O paradigma de seu filho sãos os adolescente da idade dele. Mas, realmente... Oh tempo bosta para crescer!

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