quarta-feira, 10 de março de 2021

O Homem Invisível de H. G. Wells e Alan Moore


Cena de The Invisible Man (1933)

"O Senhor Wicksteed era um homem de quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, intendente de Lord Burdock, de aparência e hábitos inofensivos, de modo que seria a última pessoa no mundo a provocar um antagonista tão terrível. Contra ele, o Homem Invisível usou uma barra de ferro que arrancara de um pedaço partido de cerca. Abordou o pacífico homem, que calmamente voltava para almoçar em sua casa ao meio-dia. Atacou-o, destruindo suas frágeis defesas, quebrando-lhe o braço, derrubando-o no chão e esmagando-lhe a cabeça até que se tornasse geleia."

Acho que o primeiro filme onde vi boa concepção d'O Homem Invisível foi no excelente O Homem Sem Sombra (2000, locado em VHS). Na verdade, à época, foi excelente para mim. Hoje, acho-o meio fraquinho. Mas ali estava toda a essência da obra de H. G. Wells, adaptada para o mundo contemporâneo. O cientista interpretado por Kevin Bacon torna-se extremamente cruel e insano, como efeito colateral à sua invisibilidade irreversível. Depois, conheci o "verdadeiro" Griffin em A Liga Extraordinária de Alan Moore e Kevin O'Neill. Entre tantas mentes malignas e até mesmo alienígenas, Griffin (mesmo integrando grupo de heróis vitorianos) desponta como o pior dentre os piores. Sua primeira aparição é habitando, escondido, uma escola para moçoilas, onde se passa por assombração para estuprar geral. No segundo volume d'A Liga, barbariza Mina Murray e, por isso, tem seu final tragicamente selado pelo Dr. Jekyll/Hide, com todos os ossos do corpo trucidados e, ao final, enrabado pelo monstro, deixado para morrer em agonia (e arrombado).

Não havia lido a obra primeva de H. G. Wells, até recentemente. E, colegas, Alan Moore foi certeiro naquela representação. O trecho transcrito acima evidencia como o físico é sádico. Contudo, antes mesmo de ingerir a fórmula, o sujeito era mau. Totalmente indiferente às pessoas, por exemplo, levou o pai ao suicídio ao roubá-lo. E fez questão de não tentar limpar sua honra na cidade onde morava e faleceu afamado por ladrão. Em dado momento, ainda zomba do suicídio, atribuindo-o à fraqueza do genitor.

N'A Liga, me causou estranheza que, após o último suspiro de Griffin, seu sangue aparece nas roupas de Hide e em todo o canto. Foi uma licença à ideia original de Wells. O sangue coagularia normalmente mesmo com seu dono ainda vivo. No romance, o louco invisível explica a seu amigo Kemp acerca disso: "É um grande incômodo ver meu sangue espalhado por aí, não é? Ocorre que ele se torna visível quando coagula. Modifiquei apenas o tecido vivo, portando a invisibilidade só durará enquanto eu viver.". O autor também tenta explicar o procedimento de invisibilidade de todos os tecidos com algo acerca de ótica e refração da luz. Achei interessante, aliás. Ao menos para a época quando foi publicado (1987).

Similar aos quadrinhos de Moore e O'Neill, o final do Homem Invisível também é trágico no romance. Só não rola, certamente, o enrabamento forçado. Aliás, é bom notar que Moore possui uma fixação esquisita por violação...

Outro aspecto da obra que poderia ser melhor aproveitado nos quadrinhos é o problema em estar invisível enquanto se digere alimentos, recebe gotículas de água, neve e sujeira. Isso acaba se tornando um inferno na vida de Griffin, além de passar bastante frio e machucar os pés nas longas caminhadas. No excelente filme Memórias de Um Homem Invisível (de 1992, visto por mim diversas vezes na Sessão da Tarde, mas que não considero meu primeiro contato o Homem Invisível próximo da concepção original, por se tratar de comédia e Chevy Chase ser vítima e não vilão), esses incômodos são explicitados. Há cena neste filme, aliás, que lembra o romance, além dos problemas com comida: o ato de fumar: "Depois de comer, e fez uma farta refeição, o Homem Invisível pediu um charuto a Dr. Kemp. Mordeu a ponta rudemente, antes mesmo que Kemp encontrasse uma faca para cortá-la, e queixou-se quando a folha do revestimento afrouxou. Era estranho vê-lo fumar. Era possível ver a boca, a garganta, a faringe e as narinas moldadas em uma fumaça espessa que rodopiava dentro dele".

No cinema, ao menos Chevy Chase tornou-se invisível junto com sua roupa e assim evitamos vê-lo peladão. Quando puderem, confiram o filme. Representa bem o auge de um tipo de comédia que se perdeu no tempo e ainda contamos com a beleza jovem de Daryl Hannah.

Em resumo: gostei de ler o romance. Não supunha ser tão bom. Via-o apenas como ficção científica e me deparei com puro terror. Além disso, a edição da Pandorga ficou excelente. Evito comprar livros impressos, mas naquelas promoções onde mal se paga o frete, adquiri o belíssimo box. Os livrinhos tiveram belíssimo trabalho gráfico, com capas super coloridas emulando livretos pulp e quadrinhos juvenis. O artista brasileiro responsável chama-se Butcher Billy. Na caixa, ainda temos A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos.

Acerca da arte, infelizmente fica claro o artista desconhecer os livros. Vê-se claramente que sua concepção artística se deu sobre garimpo digital de filmes antigos. Sua concepção de Morlocks (humanóides d'A Máquina do Tempo), por exemplo, se baseia no filme de 1960, totalmente discrepante da obra escrita. Prefiro pensar que este foi o objetivo, num trabalho de capista cujo objetivo seria, justamente, remeter a pôsteres cinematográficos. Vai-se saber...

Não falarei sobre os dois outros romances (novelas) nesta postagem. Talvez noutra. Mas destaco me chamar atenção a apresentação de A Máquina do Tempo, onde os editores ressaltam que a civilização mostrada ali, no futuro (ano 802701, onde os Eloi(s) habitam na superfície e os Morlocks nos subterrâneos, "escravizados" para manter a vida boa dos "de cima"), constituiria "feroz crítica à sociedade industrial" da época do autor, pois este foi inspirado em Marx e era "conhecido defensor de ideais socialistas". Até aí, ok. Mas e o restante? Não compreendo a tara dessas editoras em advogarem comunismo a todo custo. Quando a novela foi escrita (publicação em 1895), sequer havia regime de mercado como hoje. Além disso, Wells morreu em 1946 e não testemunhou a abertura dos arquivos de Moscou, os números dos expurgos de Mao e Pol Pot e sequer chegou a saber do Holomodor (encoberta por anos a fio). Acho perigoso quando a esquerda festiva utiliza figuras do passado para enaltecer ideologias macabras. Aliás, penso que, atualmente, A Máquina do Tempo representaria bem o comunismo: Os Morlocks (cidadãos comuns) ralando por migalhas para manter os Eloi (políticos, burocratas e amigos do Partido).

Ademais, não há sistema de exploração no romance. Veja bem: de acordo com o Viajante no Tempo, a sociedade evoluiu em paz durante eras: "Os ricos enfim seguros com suas riquezas e confortos, os trabalhadores seguros com suas vidas e trabalhos.". Só que, num dado momento, o sistema degringolou: a aristocracia se deu cada vez mais a atividades meramente frívolas e emburreceram e os operários, proprietários de todo o maquinário no subsolo, passaram a supri-los em troca de alimentos. Ocorre que a carne passou a rarear e apenas os Eloi eram frugívoros. Logo o hábito ancestral do canibalismo retornou. E os Eloi, mais fracos, passaram a ser caçados durante a noite. O Viajante chega a enxergá-los como rebanho que pasta feliz durante as manhãs para, sem advertência, servir de alimento à raça mais forte: justamente os Morlocks.

Ao final da obra, o editor destaca os ideais feministas de Wells e, novamente, repete sua ideologia socialista (o cara seria quase o Fiuk!). Faltou um pouco de pesquisa, como sempre. H. G. Wells gozou de bastante prestígio ainda vivo e, logo, se inclinou aos ideais fabianistas, integrando a elite intelectual por trás da Sociedade Fabiana: pobres e classe média não deveriam existir se não para ser direcionados pela nata intelectual e econômica. Destaco que fabianistas célebres defenderam publicamente genocídios de "raças inferiores" e "pessoas inadequadas". Bernard Shaw, v.g.,  se esforçou para criação de gases letais que facilitassem a execução de homossexuais, negros, ciganos e povos subdesenvolvidos. Pois é... Wells era adepto do socialismo (fabiano).

Conhecido defensor de um mundo sem fronteiras, empreendeu bastante energia pelo fim de soberanias nacionais em prol de uma Nova Ordem Mundial, algo deixado claro em seu A Conspiração Aberta e em artigos e palestras. Felizmente, possuímos uma dessas palestras gravada, onde os ideais fabianistas do autor, que nada tinham de "amor ao próximo" - mas, sim, a implantação de um governo global - ficam claros para quem fez o dever de casa além dos livros made in MEC. E este Governo não existe sem totalitarismo, supressão cultural, expurgos e demais males de todo pensamento revolucionário.

Destaco ainda uma pérola encontrada logo no início d'A Guerra dos Mundos. Ao narrar a extinção de bisões e dodôs causadas por nós, pessoinhas más, o autor cita a dizimação dos aborígenes tasmanianos, da seguinte forma: "Os tasmanianos, apesar de sua aparência humana, foram varridos da face da Terra em uma guerra de extermínio empreendida por imigrantes europeus (...)". Destaco: "apesar de sua aparência humana". Enfim, por mais que algumas pessoas queiram dar lições éticas (lacrar, como falamos atualmente), em alguns momentos sempre deslizarão em suas convicções mais sombrias. Ainda pensei que poderia ser equívoco na tradução. Então fui em busca do texto original e achei: "in spite of their human likeness". C'est fini!

É isso. Desconhecia totalmente o escritor britânico e me surpreendi com sua prosa fluida e agradável, bem como com as bases científicas bem fundamentadas. A presença de seus escritos vê-se em toda a cultura pop (cinema, quadrinhos, jogos etc.). Achei que seu nome fosse sempre recordado pela natureza de precursor. No entanto, estava errado: sua prosa é notável até para o dias atuais. Fica a sugestão de leitura, ainda mais para quem gostou da concepção de Griffin n'A Liga Extraordinária.

Abraços invisíveis e até a próxima.

10 comentários:

  1. Tenho uma edição bem antiga do livro, comprada a um sebo ainda na década de 90. Também gostei bastante do filme com o Kevin Bacon e desconhecia a existência do com o Chevy Chase; vou ver se o encontro para baixar, afinal, só de contar com a bela Daryl Hannah,a minha replicante favorita, no elenco já é compensador. E mea culpa, mea maxima culpa, ainda não li a Liga Extraordinária de Alan Moore

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    1. Fala, Marreta.
      Gostaria realmente de ter lido há mais tempo. Sempre releguei Wells supondo que seria scifi antiquado etc., por assim dize, o que foi bobagem. Felizmente retirei o atraso. Vi que o filme se encontra na grade do Prime da Amazon, acaso vc assine (recomendo, por custar menos de dez reais ao mês).
      Se não conhece A Liga, está perdendo MUITO!!!
      Abraços!

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  2. Ótimo post
    HG Welle tb escreveu uma coleção de livros sobre a história universal q é sempre lembrada em antologias

    Abs!

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    1. Olá, Scant!
      Pretendo ler mais do autor. Pretendo... não sei se farei a tempo antes de bater as botas!
      Abraços!

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  3. Um outro livro dele que eu também recomendo é a Ilha do Dr. Moreau. Muito bom.

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    1. Olha só, outro clássico que tb inspirou Alan Moore em A Liga. Em A Liga, temos A Guerra dos Mundos, O Homem Invísivel e A Ilha do Dr. Moreau!!! Isso se não me está escapando mais nada. Outro motivo para vc ler logo esta HQ.

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  4. O Griffin que conhecemos na Liga é um grande sacana e foi um prazer acompanhar o que aconteceu com ele nas mãos do Hyde.
    Não sei se conhece Planetary do Warren Ellis, é um gibi que recomendo bastante. Na obra, Ellis cria "Os Quatro", grupo de antagonistas com clara referência ao Quarteto Fantástico. Me lembrei do gibi pois a personagem análoga a Mulher Invisível tem que utilizar um par de óculos especial para poder enxergar enquanto está invisível. A explicação para isso é completamente lógica.
    Não sei se é coincidência mas o título do seu post mais recente remete a máxima de Planetary: "É um mundo estranho. Vamos mantê-lo desse jeito". Abraços!

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    1. Olá, Pateta.

      Conheci Planetary por meio da finada Pixel. O mais bacana é que conheci justamente quando a editora andava mal das pernas e começou a colocar à venda várias publicações, em gôndolas de supermercados, a preço de banana. Dizem que não era ela quem fazia isso, mas um grande comprador das sobras, similar ao que a Culturama fazia com material Disney da Abril.
      No caso do homem de Wells, ele utiliza os óculos para disfarce, junto a um nariz postiço, peruca e as ataduras. Mas, em Ellis, recordo que ficou interessante essa abordagem acerca dos óculos.
      Sobre a coincidência, foi uma bem feliz. Ou uma sincronicidade. rs
      Abraços!

      Marreta,
      conheci Transmetropolitan há uns anos, tb. Achei legal no começo, mas depois foi ficando cansativo...
      Abraços!

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