domingo, 26 de fevereiro de 2017

Esta é a verdadeira História do Paraíso [ por Millôr Fernandes ]



Já comentei um portfólio de Millôr Fernandes aqui no blogue. Sou grande admirador desse artista de inúmeras facetas e de seu refinado bom humor. Sua perda foi lamentável; mas, ao menos, não prematura. Aproveitamos muito de seu talento, em sua extensa produção artística e literária. Desta vez, quero mostra minha edição de Esta é a verdadeira história do Paraíso, uma narrativa ilustrada que toca na sensibilidade religiosa de muita gente e que, no passado, levou a um grande desentendimento entre o Millôr e a revista O Cruzeiro que, no desenrolar de tudo, acabou envolvendo ainda dezenas de profissionais da área de comunicação. Sobre o fato, transcrevo palavras do próprio autor, abaixo.
A Verdadeira História do Paraíso foi escrita aos poucos, ao acaso, frases soltas, conceitos ocasionais que me ocorriam enquanto fazia, semanalmente, através dos anos, na revista O Cruzeiro, a seção humorística O Pif-Paf ("Cada número é exemplar. Cada exemplar é um número").
Um dia, no fim da década de 50, não me lembro exatamente quando, num programa de televisão que eu apresentava pessoalmente em Belo Horizonte, estimulado por meu fraterno amigo Frederico Chateaubriand, contei, ilustrando com desenhos, a história completa pela primeira vez. Não sei se houve algum protesto, há sempre, mas a TFP não se desmoronou, o país continuou a avançar nos seus precários trilhos (bitola estreita), e o sol prosseguiu nascendo e morrendo a espaços aproximados de 12 horas.
Posteriormente, a história foi apresentada, também, na TV Tupi do Rio, e num espetáculo teatral, Piftac-Zigpong, antes de ser vendida como matéria especial com contrarecibo e pagamento adiantado, pois eu conhecia bem a administração da empresa, para a revista O Cruzeiro, em maio de 1963. A revista, creio que por motivos de programação, só publicou a história seis meses depois, em outubro, ocasião em que eu viajava pela Europa. Uma noite, estando numa festa em Lisboa, me lembro de que havia, na festa, uma ilustre companhia, desde a senhora Princesa da Fátima à não menos senhora condessa de Paris, pois eu, Proust e Ibrahim Sued estamos sempre nessas, o cantor Juca Chaves se aproximou de mim com aquele ar satânico de quem vai anunciar a repetição do terremoto de 1755 e perguntou: "Você viu o que O Cruzeiro escreveu contra você?" Vi no dia seguinte, na embaixada.
Na primeira página da revista, na qual eu tinha trabalhado 25 anos (seis meninos, tínhamos elevado a vendagem da revista de 11.000 a 750.000 exemplares semanais, a maior da imprensa brasileira em todos os tempos) havia um incrível editorial contra mim, naturalmente não assinado, no qual se dizia que eu tinha publicado a história, dez páginas em quatro cores (!), sem conhecimento da redação, da secretaria e, conseqüentemente, da direção do semanário. Acho que o fato é inédito na história da imprensa e da pusilanimidade internacional e só foi mesmo possível devido ao caos moral em que se transformaram os Diários Associados, desagregação essa que, pelo gigantismo da organização, influenciou, e influencia ainda hoje, no pior sentido, a imprensa brasileira.
Não houve nada mais deletério, mais deliqüescente, do que aquele espírito jornalístico, que continua, como um miasma, a atuar sobre a presente geração. O editorial mandado publicar contra mim na revista O Cruzeiro, por seu diretor Leão Gondim de Oliveira, causou tal indignação nos meios profissionais que produziu efeito contrário ao esperado: num jantar de desagravo que me foi oferecido compareceram, representando oficialmente as empresas que dirigiam, os diretores e presidentes dos maiores veículos de comunicação do país: rádios, tevês, jornais, sindicatos, revistas, editoras e mais de duas centenas de jornalistas e escritores do Rio e de São Paulo. Uma demonstração maciça de imprensa contra imprensa quase impossível de se repetir.
Por que a revista O Cruzeiro escreveu o editorial contra mim? Simples; publicada na revista a história deste livro, aliás ainda mais inocente, pois fiz, no livro, algumas alterações, coisa natural, vividos tantos anos de permissividade, a empresa sofreu uma certa pressão de alguns carolas do interior, exatamente 36, como consta do processo trabalhista, o suficiente, porém, para apavorar a proprietária da revista, dona Amelia Whitaker Gondin de Oliveira, carolíssima. Não tendo argumentos com que apaziguar os pobres diabos que passavam, para ele, por "representantes da igreja" - isso mesmo, como Cristo e como o Papa - o diretor da revista achou mais fácil me atacar à distância, servindo-se de minha ausência. Típico. Como típico também, com referência à igreja de então, caindo pelas tabelas de gagá, é o fato de, no meio de 112 artigos escritos indignadamente contra o semanário associado, no meio de centenas de telegramas de solidariedade, no meio de incontáveis demonstrações pessoais de apoio, eu não ter recebido nem uma palavra favorável de um líder, um prelado ou um pensador católico.
Conto isto como um simples e necessário registro, pra que o leitor conheça a origem deste texto, as vicissitudes por que já passou, conto, em suma, a história desta istória. Ganhei, naturalmente, a ação judicial que fiz contra O Cruzeiro. A violência evidente teve que ser reconhecida até pela burocracia seiscentista da trôpega justiça trabalhista brasileira. Por isso continuo aqui, gordo e feliz (mentira, só feliz) enquanto a revista e seus editores morriam de cirrose ética dois anos depois. Moral, meus filhos: a justiça farda, mas não talha.
O rebuliço tem sua razão de ser. Durante toda a história, encontramos “um Deus” guiando sua criação da maneira menos sensata possível. Por que criar a vida tão bela que pode ser destruída de maneira tão cruel e sofrida até por seres microscópicos como vírus e bactérias, por exemplo? E os desastres naturais? Nas ilustrações, “Deus” sempre está mascarado. Embora sua face seja a de um bom velhinho, vemos, por trás de sua cabeça, o barbante que a amarra. Ao final do livro, o autor conclui:
De qualquer forma, porém, dentro e fora do Paraíso, o Mundo não foi realmente uma criação sensata, feita com estudo e cálculo. Tem lá seus momentos de magnífica inspiração, tem lá seus pôr-de-sol, suas auroras, mas o Senhor, de modo geral, fez tudo precipitadamente, num terrível exemplo de improvisação, de deixa-que-é-mole, de jeitinho, que até hoje os urbanista, prospectistas e futurólogos continuam imitando. No caso do Todo-Poderoso porém não há qualquer justificativa. Ninguém lhe deu prazo, ninguém lhe encomendou nada, não tinha data de entrega.
Após esse trecho, Millôr aponta para “Deus” e faz a acusação final: “Essa pressa leviana / Demonstra o incompetente: / Por que fazer o Mundo em sete dias / Se tinha a Eternidade pela frente?”. Após isso, o Senhor sai de cena desconfiado e, escondido de todos, retira a máscara: era, todo o tempo, o Diabo fantasiado. Ainda não sei como algo tão bobo pode ferir a sensibilidade de tanta gente. O objetivo não foi atacar o deus de nenhuma religião; mas somente criticar algumas "inconsistências" de nossa existência tão obscura e, até mesmo, alfinetar o "tinhoso".

Já encontrei uma brochura do ano de 2006, editada pela Desiderata, para a venda. Meu exemplar é uma edição de 1972 em capa dura da Livraria Francisco Alves Editora S/A, com diagramação e supervisão gráfica de outro grande artista gráfico: Caulos. As páginas, não numeradas, tem ótima impressão em razão da elevada qualidade do papel. Tamanho: 21,0 x 28,0, com prefácio do próprio autor (o texto reproduzido acima!). Se você encontrar esta publicação em sebo, compre. Vale a pena.






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