sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Do Inferno [ Alan Moore e Eddie Campbell ]




Assassinato não é como nos livros. Homicídio, um evento humano localizado tanto no espaço quanto no tempo, tem um campo imaginário completamente não circunscrito por ambos os conceitos. Possui significado e forma, mas não solução. A incerteza quântica, incapaz de determinar tanto a localização de uma partícula quanto a sua natureza, necessita que nós mapeemos todos os possíveis estados da partícula: sua superposição. Jack não é Gull ou Druitt. Jack é uma superposição.
Alan Moore
Algumas obras marcam nossas vidas. A Ilha Perdida de Maria José Dupré foi o primeiro romance que li, quando criança. Lá se vão anos. Mas nunca esqueci a trama e tenho ainda hoje colados em meu córtex várias passagens e ilustrações da edição que possuí. Já na fase adulta - mesmo acreditando que Machado de Assis foi o autor que mais me encantou pelo conjunto da obra - encontrei em O Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse uma necessidade de mudar algo em minha vida. Após acompanhar um pouco da trajetória do protagonista José Servo, algo se alterou significantemente dentro de mim; tentei resgatar o que anos de amadurecimento me retiraram: o encontro introspectivo, a possibilidade de buscar paz interior, sem o auxílio de nenhum recurso externo ou material. Tenho muitos exemplos de obras literárias significativas ao meu espírito.

Em matéria de quadrinhos, me foram importantes as publicações Abril e Globo da Turma da Mônica e alguns almanaques Disney que, às vezes, surgiam em minha casa. Depois, ingressando na adolescência, tomei contato com HQs de heróis (nos formatinhos mutilados da Abril) e outras mais adultas: KriptaCalafrio e Mestres do Terror. Mas um gibi ocupa, até o momento, aquele lugar especial que reservamos a algumas obras. É que nunca vi o espaço em branco oferecido pela folha de papel ser tão bem explorado na criação de uma HQ como a bem sucedida empreitada de Alan Moore e Eddie Campbell em Do Inferno (From Hell).

Do Inferno foi editada, no Brasil, pela Via Lettera, em quatro volumes, nos anos de 2000 e 2001, ao preço médio de R$ 45,00 cada livro (é bom recordar esses valores para quem reclama dos preços da Panini). São esses volumes que possuo na coleção. Sou fã das publicações da Via Lettera, conquanto os preços fossem extorsivos. Embora sejam brochuras, o papel do miolo é um tipo offset de excelente qualidade e gramatura, com ótima impressão. Não sou tão adepto do cuchê, pois o reflexo não proporciona uma leitura tão boa. Só que isso é questão de gosto. E, para quem quiser conhecer este que - para mim - é a melhor HQ já publicada, já está à venda o volume único lançado este ano pela Veneta, em capa dura e com quase 600 páginas. A tradução é a mesma realizada na Via Lettera por Jotapê Martins.

Os assassinatos de prostitutas na Londres vitoriana, atribuídos a um certo Jack The Ripper, são o mote para a trama. No entanto, Do Inferno não é só "quem foi Jack e o porquê imediato das atrocidades". Do Inferno não é aquele filme vagabundo estrelado por Johnny Depp em 2001. É muito mais. Quando resenhei A Voz do Fogo de Alan Moore, utilizei um trecho de Do Inferno como epígrafe:
Elas sugerem que o tempo seria uma ilusão humana. Que todas as coisas coexistiram no todo estupendo da eternidade. Os padrões quadrimensionais no interior do monolito da Eternidade, ele sugere, parecem apenas eventos aleatórios aos observadores tridimensionais... eventos que rumam em convergência inevitável como linhas de uma arcada. Digamos que alguma coisa peculiar aconteça em 1788... um século depois, ocorrem eventos relacionados. Então, novamente, em 50 anos. Depois, 25. Aí, 12. Uma curva invisível convergindo, despontando pelos séculos.
Depois, comentei o seguinte:
Na obra - já editada em quatro volumes pela Via Lettera - somos convencidos pela ideia de que o médico Sir William Withey Gull não deu uma alma a Jack The Ripper, mas foi instrumento de uma Cidade com milênios de história de sangue. Quem matou as prostitutas de Whitechapel foi Londres - sua história e arquitetura - permitindo a confluência de uma reverberação de violência que houve, haverá e está havendo, ao mesmo tempo. Tudo é uma reverberação no monobloco da eternidade.
Do Infernoé um pouco disso e muito mais. Na trama, somos de início apresentados a um jovem que se tornará Sir William Withey Gull, médico permanente da Rainha Vitória. Esta, a fim de evitar um abalo na família Real - após o nascimento de uma criança fruto do relacionamento entre o Príncipe Albert e uma plebeia conhecida por Anne Crook, transeunte do miserável submundo londrino, empesteado por álcool e putas baratas - solicita ajuda a Sir William Gull. A resolução encontrada é um banho de sangue paranoico perpetrado pelo médico, crente de seus desígnios místicos, apoiado na força da Maçonaria - sociedade que tem sua relevância muito bem detalhada na relação entre a magia e a arquitetura londrina, no quarto magnífico capítulo O Que O Senhor Espera de Ti?. Os assassinatos não são apenas praticados para apagar as pistas da vida sombria de um membro da realeza; eles se revestem de caráter mágico e, a partir de Londres, dão à luz o século XX. Jack - O Estripador - fez o parto de um novo século e serviu de elo a uma cadeia de violência que precisa ecoar na eternidade. No ínterim desse vórtice, ainda esbarramos em figuras célebres inseridas espertamente por Moore: William Blake, Aleister Crowley, os pais de Adolf Hitler, Joseph Merrick (o Homem Elefante), William Yeats, dentre outros.

É difícil resenhar Do Inferno. Gostaria de fazer isso. Mas me falta tempo, pois a empreitada não é fácil. Sem dúvidas, é a história em quadrinhos mais complexa (bem amarrada e construída) com a qual tive contato. Ao final, todas as pontas são amarradas num salto histórico, onde, num momento de epifania de Sir William, somos apresentados aos reflexos de suas ações na vida moderna, num dos momentos mais emblemáticos da trama. É aquela espécie de obra que você não comenta muito; apenas recomenda para que outro leitor lhe dê uma chance e retire suas próprias conclusões.


Do Inferno [ Alan Moore e Eddie Campbell ] por kleiton-alves

6 comentários:

  1. Fiquei com sentimento parecido quando li Miracleman. "Do Inferno" ainda não me sinto pronto para enfrentar.

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    1. Arregace as mangas e mergulhe de cabeça nesse lodaçal fantástico de sangue.

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  2. Também tive muita dificuldades para resenhar Do Inferno mas lembro que de início achei uma empreitada difícil de embarcar, acho que pela minha falta de costume no gênero mas com o passar das páginas me agradou muito, sem contar a presença de figuras conhecidas e o traço bem atrativo aos olhos.

    Abraço,
    Parágrafo Cult Blog

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    1. Larissa, acho Do Inferno a sua cara, considerando seu gosto pelo terror. Vc é mais gótica. Mas creio q terrores como o de Moore podem sempre te agradar. Pretendo reler Do Inferno.
      Abraços!

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  3. resenhar daria muito trabalho, quase um livro

    a obra tem detalhes demais

    li a versão da Veneta e fico feliz que a tradução seja boa e a mesma da outra editora

    abs!

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