terça-feira, 24 de julho de 2018

Sandman: desilusão, morte e responsabilidade


E aqui é onde realmente começa uma grande história.

"Supercalifragilisticoespialidoso!"
Mary Poppins citada por Morte

Estava pensando se iria reescrever uma postagem perdida sobre os dois livros da mitologia Hellraiser que já li: Coração Condenado e Evangelho de Sangue, de Clive Barker. Infelizmente, perdi a postagem para sempre e teria que tentar reescrever tudo, o que parecia ser um bom exercício criativo, embora meio broxante. A primeira vez que li Coração Condenado foi no Kobo - melhor presente que ganhei em minha vida, despertando o gosto necessário pela leitura eletrônica. Digo "necessário" porque não tenho mais espaço para livros e quadrinhos, e olha que já dei vários de presente. E também porque, próximo aos quarenta anos de idade, minha visão está ruim. Depois, não resisti ao lançamento da Darkside e comprei a nova tradução do Alexandre Callari, que também traduziu Evangelho de Sangue.

Enfim. Repensando nessa nova postagem, acabei me centrando nos pensamentos do Sacerdote vulgarmente conhecido por Pinhead e suas reflexões sobre a existência. Na trama dos "scarlets gospels", o detetive fodido até a alma Harry D'Amour vai ao inferno para resgatar sua amiga Norma e testemunhar a revolução perpetrada por Pinhead, que, expulso propositadamente do Mosteiro onde habitam os Teólogos da Ordem de Gash, promove uma carnificina sem precedentes na antiga história das terras baixas, sacrificando todos os irmãos cenobitas e até mesmo a alta cúpula dos demônios. Não tem como escrever sobre o que quero sem entregar a trama, então vamos lá com spoilers. É dito que há muito tempo Lúcifer mandou o inferno para o quinto dos infernos e sumiu do mapa. Após uma peregrinação pelas terras áridas, Pinhead chega à catedral erguida por Lúcifer para onde ele foi... morrer. Sim, cansado da existência, o Estrela da Manhã arquitetou seu fim por meio de um grande aparato mecânico, ligas metálicas esquisitas e dentro de um mausoléu gigante onde apenas queria que seu corpo repousasse sem testemunhas. Carne de anjo não apodrece, e o tinhoso ficaria ali para sempre, perfurado, esquecido.

Eu sempre acreditei que a morte é um alívio, uma saída mansa para os problemas. Aliás, a punição de Deus para Caim foi a vida longa e protegida de violência. E Lúcifer teve a mesma punição, junto com seus camaradas. Ele foi arremessado com toda a eternidade pela frente, amando Deus mesmo assim e sendo por ele amado. Parece estranho. Mas quem somos nós para perscrutar os desígnios divinos? Na obra de Barker, D'Amour, testemunhando Lúcifer morto, pergunta "Por que o suicídio elaborado?". Ao que o Sacerdote responde: "O Senhor Deus é um Deus vingativo. A sentença de morte de Lúcifer era a vida eterna. Ele estava além da morte. Encontrou uma forma de esquivar-se à sua imortalidade".


Tudo é morte, mulher. Tudo é dor. O amor gera a perda. O isolamento gera ressentimento. Não a importa a direção que nos viramos, sempre somos feridos. Nossa única herança verdadeira é a morte. E nosso único legado, o pó.
Pinhead divagando em Evangelho de Sangue, Livro II

Isso me lembrou muito Sandman de Gaiman. Vários bons escritores que deram qualidade à nona arte tentaram abordar um pouco a natureza divina e a do Diabo em suas HQs. Garth Ennis encontrou sucesso com Constantine e Preacher neste sentido. Mas em Hellblazer, no arco Um Patife Nos Portões do Inferno, divagou bem sobre cansaço, morte e responsabilidade. À beira da morte, o Primeiro dos Caídos conversa com Constantine sobre sua origem, quando iniciou sua queda após perceber que Deus, após eras impensáveis de existência, enlouqueceu: "Por que um Deus do amor iria amaldiçoar suas criações com séculos de dor? Por que um ser supremo é tão enamorado do livre arbítrio? (...) Até uma criança de quatro anos poderia perceber a verdade". Gaiman explorou isso muito bem em Sandman e em seu Mistérios Divinos.

Minha edição de Um Patife Nos Portões do Inferno, no velho papel jornal.

Alguns aspectos da trama envolvendo Lúcifer em Hellraiser me recordaram do Estrela da Manhã em Sandman de Gaiman. Enquanto D'Amour vai em busca de Norma, Sonho tenta resgatar Nada dos domínios do Coisa Ruim. E, assim como na obra de Barker, o Demônio de Gaiman é alguém cansado de tudo, chegando a confessar a Sonho: "Estou tão cansado, Morpheus. Muito cansado". Ele não queria estar ali, nunca quis. Um dia, caiu. Foi o primeiro. Outros foram chegando e nem mesmo almas ele buscou para seu reinado. Os condenados chegavam para sofrer no reino de Lúcifer apenas porque queriam. Lúcifer nunca almejou ao posto de Adversário. Então é quando ele abdica de tudo, expulsa todos e dá as chaves daquele lugar imundo a Sonho. É então que o Moldador da Forma tem mais uma lição sobre desilusão e abdicação. A primeira fora com Delírio, sua irmã, que já se chamara Deleite e abandonou um reino por outro. A segunda foi com Destruição, seu irmão, que abriu mão de tudo para viver uma vida bucólica e sem qualquer compromisso. Sonho não entende como as pessoas podem abrir mão de suas responsabilidades assim. Um absurdo, em sua cabeça.

Quando alguém me perguntava sobre o que é Sandman de Neil Gaiman, não sabia bem o que responder. A obra é extensa e aborda tantas facetas do cotidiano e do espírito humano que, realmente, não sabia como resumir. Há algum tempo, resumo em duas palavras: obrigações e desilusões. Sim, Sandman se resume a apenas isso, no final das contas. Desde o começo, Gaiman sabia o que faria. Estava tudo lá desde o primeiro arco Prelúdios & Noturnos. Quem leu Sandman sabe que a história só engajou no capítulo 24 Horas e que, logo em seguida, mostrou a que veio na trama O Som de Suas Asas, onde Sonho está cansado e parece querer dar cabo à própria vida. Morte o leva a um passeio onde sai abatendo vidas. E sob o som tenebroso das asas de Morte, Sonho encontra mais sentido em sua vida: ele precisa continuar cuidando de seus domínios, mas apenas por enquanto. Ele precisa colocar a casa em ordem, dar cabo às suas responsabilidades, antes de partir. Assim, ele celebra com velhos amigos e inimigos, retira a vida do próprio filho Orpheus (para libertá-lo da agonia) e tenta fazer as pazes com aquelas que já foram suas mulheres, como Nada e Calíope, que tanto sofreram em suas mãos.

Sandman é quase como Manuel Bandeira no poema Consoada (o poeta que mais amo): "Quando a Indesejada das gentes chegar (...) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar". E assim é que, no final da saga de Sonho, após anos do lançamento do primeiro capítulo, compreendemos o que ele vinha realizando aos poucos: apenas pondo a casa em ordem e escolhendo seu substituto. Chegou a hora de partir.

É curioso eu ter associado Sandman a Hellraiser devido a passagem de Lúcifer. E também ter metido Hellblazer da fase Ennis. Mas tudo está conectado quando refletimos sobre esses assuntos em nossas próprias vidas. Às vezes me vejo cansado de muita coisa, mesmo antes de meus quarenta anos. Mas preciso dar conta de minhas obrigações e responsabilidades e, sim, há muita beleza na vida, coisas boas para aproveitá-las, bons momentos que ainda virão. Parecido com Constantine de Garth Ennis, que aos quarenta anos perdeu praticamente todos os seus amigos, também me vejo, aos trinta e seis anos, encarando a morte de tanta gente boa. Perdi alguns colegas para o suicídio, como falei anteriormente aqui. Alguns em razão de acidentes e outros por doenças. Minha última colega vitimada pelo câncer ficou demente antes de morrer e não se recordava de mais ninguém. Isso é indigno e dá o que pensar. Todo mundo cansar, enfim: você, Deus, Lúcifer, ou e até mesmo a personificação do Sonho. Alguns cansam e partem para o fim; outros, se prendem às responsabilidades.

O que tiro de tudo isso? Um velho chavão: buscar o equilíbrio. Parece uma frase-feita. E é isso mesmo: um lugar-comum. Só que, realmente, acredito que dá para descansar desse cansaço entre momentos de deleite e meditação enquanto cuidamos de nossas obrigações. E essa lição é fácil de retirar das obras acima mencionadas.

O final dos anos "80 deu grandes escritores à nona arte. No arco Vidas Breves de Sandman, o escritor Peter Straub nos disse que "se isso não é literatura, nada mais é". Entendo que ele, assim, endossa as qualidades literárias de Sandman. É uma afirmação respeitosa. Só que não vejo assim. Quadrinho não é literatura, é algo mais. A narrativa gráfica é anterior à escrita, encolheu por milênios e, por um tempo recente, encontrou seu lugar ao sol como uma forma de arte única. E dessa forma de arte tão elevada, podemos retirar alguns bons ensinamentos. A função da arte, penso, é permitir a fluência de nossos sentidos e de nosso espírito. Mas também podemos retirar alguns ensinamentos de tudo isso. O que aprendi com Sonho e seus irmãos Perpétuos é que reclamamos demais. O que aprendemos com Oneiros (são tantos os seus nomes!), é que realmente temos o direito de cansar. A desilusão é natural. São muitas as responsabilidades. Contudo, tanto ele quanto Lúcifer tiveram eras para entregar os pontos. Parece muita covardia que nós, com uma vidinha tão curta, façamos o mesmo.

Se você chegou ao final desta postagem, fico grato. Não sei bem o que queria com isso tudo. Apenas liguei um ponto a outro, recordei de Sandman, recordei de meus colegas ausentes, do amor verdadeiro transformado em ranço após alguns anos e palavras duras injustamente lançadas, de minha adorada filha, de toda uma boa e velha arte que consumi durante esta curta vida, e resolvi escrever algo.

Até a próxima, meus caros amigos, viventes e ausentes.

Parte de minhas HQs escritas por Gaiman.

7 comentários:

  1. “Cansaço e responsabilidade.” - o tédio é realmente um problema, principalmente para seres eternos. Não impressiona ver que nos quadrinhos Lúcifer abandonou o trono do inferno e foi tocar piano em um bar.

    "Mistérios Divinos” - uma das melhores estórias que li.

    Outra obra que poderia se encaixar nesse universo sobrenatural é “Midnight Nation – O Povo da Meia-Noite (2003)/J. Michael Straczynski”. Nela temas como morte, ilusão, redenção e dor são bem tratados.

    “poema Consoada” - não conhecia. Bem legal a ideia de deixar tudo em ordem antes de ir. Lembra a ideia de alguém se aprontando para uma viagem.

    “buscar o equilíbrio” - às vezes é como tentar segurar as paredes no meio de um terremoto, mas faz do jogo. tanto

    Abs!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mueito bem lembrado quanto a Midnight Nation.Sobre Manuel Bandeira, é meu poeta prefiro desde quando passei a ter contato com poesia.
      Não curto muito lugares-comuns, como são as frases bonitas de "sabedoria" e "superação". Mas "bucas equilíbrio" ainda serve para alguma coisa.
      Abraços, grande!

      Excluir
  2. sou fã de clive baker, otimo comentario sobre ele, gostei do blog

    ResponderExcluir
  3. http://quadrinhosinglorios.blogspot.com/2022/05/hellraiser-nightbreed-jihad.html

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fala, Scant. Li há alguns anos essa hq, junto tantas outras como as da Boom (medianas) e publicadas há alguns anos pela Abril (salvo engano) em quatro edições, da Marvel (excelentes). Tb possuo algumas impressas da Boom (o lixo mais recente) e o encadernado de 2003 da Brainstore (com altos e baixos).

      Excluir
    2. Curioso que assim q vi a capa não recordei que já havia lido esta hq... Merece releitura.

      Excluir

Comente ou bosteje.