sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A Voz do Fogo [ romance de Alan Moore ]



Elas sugerem que o tempo seria uma ilusão humana. Que todas as coisas coexistiram no todo estupendo da eternidade. Os padrões quadrimensionais no interior do monolito da Eternidade, ele sugere, parecem apenas eventos aleatórios aos observadores tridimensionais... eventos que rumam em convergência inevitável como linhas de uma arcada. Digamos que alguma coisa peculiar aconteça em 1788... um século depois, ocorrem eventos relacionados. Então, novamente, em 50 anos. Depois, 25. Aí, 12. Uma curva invisível convergindo, despontando pelos séculos.
O trecho acima, retirei de Do Inferno (Capítulo II), o melhor gibi que já li, escrito por Alan Moore e ilustrado por Eddie Campbell. Na obra - já editada em quatro volumes pela Via Lettera - somos convencidos pela ideia de que o médico Sir William Withey Gull não deu uma alma a Jack The Ripper, mas foi instrumento de uma Cidade com milênios de história de sangue. Quem matou as prostitutas de Whitechapel foi Londres - sua história e arquitetura - permitindo a confluência de uma reverberação de violência que houve, haverá e está havendo, ao mesmo tempo. Tudo é uma reverberação no monobloco da eternidade. E foi essa ideia - acho - que levou Alan Moore a escrever A Voz do Fogo, seu primeiro (e, por enquanto, único) romance.

Eu conhecia pouco da prosa de Moore. Acho a parte em prosa d'A Liga Extraordinária simplesmente... extraordinária, dividida nos três livros (capítulos) que compõe o terceiro volume da obra. Conhecer este longo romance de estreia foi muito bom. Conquanto tenha apenas 335 páginas, as letras são pequenas e o espaçamento entrelinhas bem reduzido (algo péssimo para se ler, ainda mais para quem tem problemas de visão, como eu). A leitura pode ser cansativa diante desse desleixo (economia) editorial.

Embora alguns leitores digam que a obra reúne contos interligados, sendo possível a leitura independentemente de uma ordem, discordo. Ler de acordo com a evolução cronológica torna a leitura mais coerente. A personagem principal é a própria região de Northampton. Em doze capítulos, num período de quase seis mil anos, doze personagens que viveram no mesmo local narram um momento de suas vidas: marcadas pela dor, luxúria e derramamento de sangue, com forte presença da magia. No início, conhecemos o relato de um menino das cavernas, expulso de uma tribo nômade após o falecimento de sua mãe. Sua língua é pobre em vocábulos e os verbos praticamente não são flexionados. É um capítulo extenso e dá trabalho compreender o transcurso da trama. Findo este capítulo (conto?) o leitor é premiado com toda a liberdade para seguir adiante. Abaixo, um pouco dessa emulação da forma de expressão pré-histórica:
Mulher em colocada viva por aqui, que pode espírito ela ficar perto de ponte e fazer ponte boa, que ela não cai, ela não fica em fogo. Agora menina é levanta e não diz mais nada, anda por subida e em ponte, onde segue eu atrás
Spoilers. O garoto nômade, após algumas provações, encontra abrigo num chiqueiro, recebendo comida escondido de uma garota, supostamente ajudante do Bruxo local. Com o tempo, ele cria demasiada afeição pela garota - aparentemente da mesma idade que a sua - e, com ela, tem sua primeira experiência sexual, ganhando uma punhetinha. Ele quer fugir com a menina. Mas é vítima de uma traição: a garota é, na verdade, uma menino (filho do Bruxo) e, durante este tempo, o garoto abandonado foi cevado para ser oferecido em holocausto, ainda vivo. Esse é o pontapé de dor que ecoará, nos próximos milênios, no local que se chamará Northampton, numa colina que, mais tarde, será visitada pelo próprio Alan Moore, acompanhando de sua filha Leah. Assim, um iniciado na Ordem Templária ainda embrionária (cinco mil anos à frente), sonha com o pé não coberto de terra da mãe falecida do menino outrora imolado, enquanto edifica um dos primeiros Templos britânicos destinados à adoração de Baphomet. A presença desse xamã que torra criancinhas na fogueira, por exemplo, influenciará assassinatos cometidos por duas amantes, queimadas na fogueira no século XVIII. Nada se perde com tempo; nem no espaço! E a linguagem de Alan Moore não recorre a floreios fresquinhos, ao descrever o comportamento humano, como nos registros das relações homossexuais entre as bruxas Mary e Nell:
Se experimentassem o gosto forte de sua xana, de manhã, quando ela ainda não despertou, vocês (...) apagariam suas tochas. (...) Quando Mary lambeu meu rabo, ela viu uma curiosa flor de luz que se espalhava dali, e nós começamos a rir.
As referências históricas e literárias são muitas. Encontramos, por exemplo, cabeças falantes em íntima relação com a Conspiração da Pólvora. É a cabeça desmembrada de Francis Tresham que nos fala de Guy Fawkes e Robert Catesby. Ainda conhecemos o imoral magistrado Augustus Nicholls, cujo filho terminou a vida atormentado em razão de laços com o quase mítico John Dee, conselheiro charlatão da rainha Elizabeth I. E é uma pena pensar na quantidade de referências que nos passam batidas. Seria interessante uma edição com adendo, contendo pesquisa de quase todas as bases que levaram Moore a escrever a obra.

Ainda acerca da repetição constante de fatos, em sonhos ou realidade, é interessante o capítulo O Sol Parece Pálido Sobre o Muro. O texto apresenta um novo desafio. É obra de um lunático, aparentemente internado em um hospício ou prestes a sê-lo. Dá-se em forma de diário, repassado em meio mecânico onde não havia pontuação alguma. O ano é de 1841 d.C., e o protagonista presencia uma cena que nos deixa em déjà vu: um garoto com deficiência mental é expulso, a pedradas, de um grupo cigano, após o falecimento de sua genitora. De acordo com o protagonista, este menino não conseguia articular bem a fala (o que, novamente, nos remete à língua precária existente no início da obra). Além disso, num determinado momento, é dito ao protagonista que ele está tão equivocado sobre algo que utilizam a expressão "você pensou errado como o Porco do Bruxo". Só lembrando: o "Porco do Bruxo"é justamente o título do primeiro conto-capítulo, onde o garoto ingênuo se engana profundamente acerca da benevolência de quem procura lhe ajudar e é imolado qual porco, no ritual já citado.

Esse feiticeiro de face enegrecida e chifres chega até o final trama, como uma ideia integrada a Northamptonshire. No penúltimo capítulo (conto Eu viajo com cinta-liga), um caixeiro-viajante, quando em passagem próximo à colina onde há milênios houve sacrifícios e, posteriormente, abrigara campos de cremação, recorda-se da ilustração do Bruxo em uma enciclopédia, com a qual tivera contato quando criança. Ele está com um bêbado no carona. E, sem explicação aparente, agoniado com contas a pagar, amantes exigentes e filhos a nascer, executa o pobre diabo, queimando-o meio desacordado, dentro do veículo. Os sacrifícios não param. Nomes de lugares também se repetem, a exemplo do bar/taverna "Trabalho em Vão". E datas também, ainda mais considerando que o mês de novembro e o dia de Todos os Santos é presente em quase todas as tramas. Aliás, a Conspiração da Pólvora (citada acima) teve seu desfecho no dia 05 de novembro de 1605. Ainda hoje, no mesmo dia, fogueiras são acessas para recorda a data. Novembro é um mês de fogo, seja para recordar Guy Fawkes, imolar uma criança imberbe num tempo longínquo ou assar lésbicas que curtem magia.

O último capítulo do romance é curioso. Nele, Alan Moore faz uma mea-culpa, por assim dizer. Ele é o personagem-narrador. Ele é o elemento que vê - que percebe - Northampton no ano de 1995. Moore nos fala de sua casa e do livro a ser escrito. Vai ao encontro de seu irmão Mike, visita a então namorada Melinda Gebbie. Fuma e toma chá. Comenta os programas televisivos do dia e até mesmo a cor esquisita da parede de seu sótão. Enquanto isso, nos explica como a história que está escrevendo (o livro que agora temos em mãos), é "ardente, opressiva e fatigante". Um parágrafo específico me chamou atenção, justamente, por sua remissão discreta às ideias contidas em Do Inferno. Após narrar uma briga de bar, Moore nos diz:
Esses repentinos surtos de violência, movimentos da maré na mente subterrânea de Northampton, que explode em sangue diante da menor provocação, forças ocultas que existem abaixo da superfície, sob a superfície pavimentada do pensamento desperto e da racionalidade. A cidade é como uma mente expressa em concreto, cujo subconsciente está enterrado fundo, onde os temores e os sonhos se acumulam.
As ilustrações de Cliff Harper são um detalhe significante. Cada capítulo inicia-se com uma pequena imagem, como cabeçalho, isolando um trecho do que está para ser narrado. Além disso, um mapa de uma embrionária Northampton também nos é apresentado, antes do início do texto, com todas essas pequenas cenas emolduradas, de maneira cíclica. Os desenhos, no traço típico do artista, lembram nossas xilogravuras.

Pois é....

Encontramos best-sellers entupindo todas as principais mesas de exposição em livrarias. São figurinhas carimbadas nas lista de mais vendidos da Veja. Mas nos cantos mais escondidos, escuros e empoeirados, achamos obras como A Voz do Fogo, aquele tipo de livro que muda verdadeiramente algo dentro de nós, que nos acrescenta mais indagações, ao invés de nos embalar em meros contos de fadas modernos que, essencialmente, mal servem para entreter com inteligência. Isso sem falar de vampirinhos chiques e histórias clichês que se passam em terras mágicas e primitivas, sob a luva de uma "grande saga"!

Enfim: romance 100% recomendado para quem é fã da produção quadrinística do ermitão inglês; ou, apenas, para quem quer dedicar alguns dias de sua semana a uma verdadeira obra literária que nos convida a meditar acerca de elementos espirituais a nos cercar desde a aurora do homem (ou antes mesmo disso), e que ainda ricocheteiam nas paredes desse "monolito da eternidade". A edição Conrad que possuo é péssima em seu tratamento editorial: papel muito branco (reflete luz e cansa a visão), aliado a uma fonte muito pequena (isso, para mim, tornou-se tortura há muito tempo) e péssima abertura da brochura. Além disso, há muitos erros de digitação. A editora Veneta (empreendimento de Rogério de Campos, fundador da Conrad Editora) está com uma nova edição. A tradução ainda é de Ludimila Hashimoto, após revisão. Além disso, o livro da Veneta conta com prefácio de Neil Gaiman e, pelo que notei em algumas imagens, um papel mais amarelado, similiar ao offwhite ou polen bold. Também vi boas recomendações da edição lusitana com tradução de David Soares, onde tiveram o cuidado de elaborar várias notas auxiliando tantos leitores mais jovens quanto mais maduros, numa melhor compreensão daquele universo intricado de referências tão ao gosto de Alan Moore.



* * *
Para quem quiser conhecer mais sobre o pensamento do ermitão de Northampton, recomendo o já batido documentário A Paisagem Mental de Alan Moore (The Mindscape of Alan Moore, de DeZ Vylenz, 2005). Vi há anos, baixando em pedaços no antigo fórum do Rapadura Açucarada (que deixou saudades!). Atualmente, há várias opções no Youtube, com boa resolução e legendas. Selecionei o vídeo acima, com duas possibilidades de resolução de acordo com a velocidade de sua conexão.

2 comentários:

  1. oi, vai republica as anotações sobre a Liga Extraordinária e Watchmen ?

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    1. Talvez noutro blogue de outra conta Google. Acho que estou com os arquivos salvos num drive virtual. Qual o problema? Um grupo de pessoas que vivia denunciando meu blogue anterior ficava procurando firulas para tudo, e entre elas aquelas anotações, mesmo que os autores das mesmas nunca tenham se insurgido contra mim. Denunciavam o conteúdo como plágio e isso ajudou a derrubar minha página. Se eu localizar o material (estou com muita coisa para repostar), postarei num espaço separado e informarei aqui.

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